DONATIEN

 

A Era de Aquário que atualmente atravessamos, traz para a humanidade uma tendência a valorizar o coletivo em detrimento do individual, a supremacia da tecnologia nos afazeres humanos e revoluções culturais. No final do século XVIII e início do XIX, tivemos as primeiras manifestações desse signo com a Independência das Américas, com a Revolução Francesa e com a Revolução Industrial. No entanto, na mesma época, uma proposta audaciosa e revolucionária foi relegada ao ostracismo: a revolução moral e literária por mim proposta.

Impossível não comparar o que dizem sobre mim, antes e depois da minha morte. Impossível não reconhecer que o passar do tempo muda a opinião das pessoas. Enquanto vivo, fui tachado de maníaco sexual, degenerado, pervertido, tarado, doente mental e libertino. A palavra libertino se parece com libidinoso, mas na época se referia a um aristocrata que desafiava os valores dos homens e de Deus, coisa que sempre fiz com muita intensidade.

Séculos depois de minha morte, entretanto, quem buscar informações sobre minhas ideias, encontrará referências positivas, como por exemplo, as opiniões de alguns intelectuais considerados sérios que coletei: Geoffrey Gorer assim argumentou: “ele pode com alguma justiça ser chamado de o primeiro socialista racional”. Simone de Beauvoir e outros escritores tentaram localizar vestígios de uma filosofia radical da liberdade nos meus escritos, que precediam o existencialismo moderno em cerca de 150 anos. Também fui visto como um precursor da psicanálise de Sigmund Freud em seu enfoque na sexualidade como força motriz das ações humanas.

Guillaume Apollinaire me chamou de “o espírito mais livre que já existiu”. Disse ainda que eu queria fazer tremer a base dos valores morais da sociedade, que inibiam as satisfações sexuais para civilizar os seres. Isso mesmo, eu sempre tentei abalar os valores morais, grilhões que em nome da civilidade impedem nossa liberdade de evoluir, de se expressar livremente.

Meus livros chegaram a ser julgados pelos tribunais franceses em 1950, sob a alegação de afronta à moral e aos bons costumes. Aos poucos, artistas como Salvador Dalí e André Masson começam a se inspirar nas imagens de crueldade por mim criadas para compor suas obras. Após mais de dois séculos de minha morte, recebi dos surrealistas o apelido de divino, entrando para o hall de gênios da literatura e da filosofia. O que as pessoas não entendem, mesmo nos dias de hoje, é que as narrativas de minhas obras não correspondem necessariamente às ações que eu realizava em minha vida privada.

Meu pai era um conde que numa noite de solidão engravidou uma das criadas chamada Marie, e dela eu vim à luz. Que infância triste! Por ordem dele, os empregados não deixavam que eu brincasse com seus filhos para eu não pegar a doença da pobreza. Ele sempre trazia umas raparigas para satisfazer seus desejos, e nunca satisfazia minha mãe. Desprezada, ela murchava a cada dia.

Meu pai não se preocupava em ocultar seus atos eróticos de uma criança como eu. Por isso, muitas vezes o via fornicando ou correndo pelo castelo pelado, brincando de perseguir alguma donzela, fato que provocava em mim sensações então estranhas – excitação.

Quando eu completava sete anos, meu pai saiu para uma viagem e não voltou mais. Abandonada sem

nenhuma explicação e sem ter como sustentar-se, minha mãe aprisionou-se num convento de freiras. Trocou a vida no palácio por um crime contra a natureza – a castidade. Fiquei sob a responsabilidade de um tio, um abade católico, que se encarregou da minha educação. O abade me envolvia em todas as suas aventuras eróticas – fui muitas vezes estuprado – e assim como a maioria dos sacerdotes que conheci, tinha um comportamento sexual semelhante ao que eu mesmo desenvolveria ao longo da vida, de plena liberdade sexual.

Nasci em 2 de junho de 1740. Meu nome é Donatien, porém sou mais conhecido como Marquês de Sade.

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