ACEITO

 Certa noite, após um jantar em família, ouviu falarem por ele em sua presença, como se não mais existisse. Decidiam sobre assuntos cuja responsabilidade há pouco tempo lhe pertencia. Entendeu, então, que estava mesmo próximo do fim. Seu ego de nativo de Áries acostumado a andar na frente, a tomar decisões ousadas, a sempre buscar o novo, estava combalido. Mesmo assim, pensava em protestar, mas não por mais de alguns segundos pois sua mente logo encontrava compensações: não ser mais responsável por coisa alguma, não fazer nada ou fazer o que quiser, ou melhor, só fazer o que puder, como o Buda sentado embaixo daquela árvore…

Já se encontrava no crepúsculo da vida, o tempo corroía os músculos, as carnes, os ossos já começavam a doer… Colocar meias nos pés já pedia um esforço, qualquer pequeno excesso físico era cansativo, correr nem pensar. Entretanto, o pior não era a saúde do corpo, era a famosa ditadura dos filhos que ia se intensificando dia a dia: come isso, não come aquilo, olha o remédio, toma banho, escova os dentes, não atende ao telefone, faz exames, nada de frituras, obedece aos médicos, vai dormir cedo, se cair não se levanta… virou um joguete nas mãos daqueles que lhe queriam bem.

Queria opinar – Vacinas não! as crianças pegavam doenças, sarampo, catapora, caxumba… elas mesmo se curavam em uma semana, adquiriam imunidade de modo natural, agora são tantas injeções! Até parece que querem colocar alguma coisa dentro das crianças para torná-las mais submissas. Está certo que a gotinhas eram necessárias…

Ninguém sequer prestava atenção ao que ele tentava dizer. Ninguém lhe fazia pergunta alguma. Os idosos são incapazes, não mais percebem a realidade, suas respostas a vida são inadequadas, mal conseguem lidar com um celular, são até incapazes de pedir socorro quando estão em perigo. Morar só? Nem pensar, morreria em poucos dias. A tudo ouvia aprisionado.

A solidão cercada de parentes era insuportável. Que desejo pela real solidão! Num daqueles dias que dá vontade de voar, ele conseguiu soltar um grito repleto de dor, em pleno almoço de domingo. Todos se voltaram surpresos, afinal, ele quase nem falava. Apesar dos olhares de pena de quase todos, logrou atenção. Então fez um pedido, uma súplica – por favor, deixem-me morrer num asilo.

Que alívio! Os filhos atenderam de pronto. O velho era mesmo uma cruz que tínhamos de carregar… A família enfim libertada.

Ao contrário do que muitos pensam ao julgar desumano enclausurar idosos num asilo, que vêm isso como um ato de crueldade, de ingratidão, às vezes a realidade pode ser outra, principalmente aqui.

Chegando no asilo, ele despediu-se dos filhos com lágrimas contidas, não era adepto de dramatizações. Despediu-se com se partisse para sempre, para nunca mais vê-los. Então, ao adentrar o portal do asilo, uma sensação de liberdade brotou-lhe de dentro, sentiu-se rejuvenescer como quando apreciava se lançar a aventuras. Voltou a sorrir e a olhar para os colegas internos com interesse, simpatia e curiosidade. Ouvi-los contarem suas trajetórias de vida, reavivava sua própria memória, e sentimentos esquecidos voltavam a provocar-lhe impulsos vitais. Até da morte se esqueceu.

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