RAPTO

O

O novo ano chegou quente e chuvoso como sempre. No lado pobre da cidade, sem temer o aguaceiro sobre as cabeças, um grupo de crianças magrelas batia de porta em porta, pedindo algo para comer. Durante o período escolar elas recebiam refeições na escola, mas nas férias… a fome as impelia à mendigagem.

Mas as escolas voltaram a funcionar no mês seguinte. O Sol à pino marcava o fim do período da manhã. Da região dos Jardins, bairro da elite paulistana, uma van escolar partiu a transportar crianças que voltavam pra casa após as aulas.

Ao contrário daquelas que antes esmolavam por comida, estas haviam nascido em berço esplêndido, ricas, bem alimentadas, alegres. Aqui e ali o veículo parava para alguma delas descer defronte de sua própria casa.

Sete crianças deveriam ainda ser entregues quando o inesperado aconteceu: uma pessoa tropeçou  caiu no caminho da van. O alerta motorista conseguiu brecar a tempo de não atropelar ninguém, desceu às pressas para socorrer a possível vítima que permanecia inerte no chão, talvez já morta.

Surpresa!

Quando o motorista tocou na vítima para chama-la, verificar se estava viva, ela ergueu-se. Era um homem grande que derrubou o motorista no solo com um empurrão, subiu ao veículo, assumiu a direção, e disparou a van pela rua, deixando boquiabertos os que assistiram à cena.

A notícia não tardou a chegar ao delegado Thales Duran, trazida pelo próprio motorista cuja van fora roubada. O homem se chamava Severino, como boa parte dos nordestinos que migravam para São Paulo.

― Pode descrever o homem que sequestrou a van, seu Severino? ― indagou o delegado logo que o homem acomodou-se à sua frente.

― Era um homem muito forte. Só com um empurrão me jogou no chão. Fiquei com medo de revidar ― respondeu Severino, envergonhado, humilhado por ter sido abatido com tanta facilidade pelo raptor.

― O senhor não conhecia o agressor? ― prosseguiu o delegado.

― Não. Nunca tinha visto.

― O senhor conhecia bem as crianças que transportava?

― Sim, eu as transportava todos os dias, faz alguns anos, com exceção dos fins de semana. 

― Pode nos informar os endereços delas, onde as entregava?

― Todas as crianças moram na Granja Viana. Não sei de cor os endereços… Teria de fazer o trajeto para lembrar de cada lugar.

― Muito bem, seu Severino. A detetive Júlia irá com o senhor e aproveitará para alertar os pais das crianças sobre o sequestro. 

Tarefa ingrata recebeu a detetive Júlia, braço direito do delegado Thales Duran: dizer aos pais que suas crianças foram sequestradas…

― Thales, por que logo eu tenho de fazer isso,  e não você ou outro policial? É barra pesada avisar as famílias! ― reclamou a detetive Júlia.

― Porque você não tem sentimentos ― afirmou Thales.

― Não tenho?

― Nunca percebi nenhuma reação emocional vinda de você.

― Só porque não sou chorona, nem vivo me lamentando?

― Principalmente porque não se importa nem um pouco com que os outros pensam de você. Sempre age como uma parede, fria.

― E não é assim que devem agir policiais e detetives?

― Nem sempre. Além do mais, você não se comporta com frieza por ser detetive, mas porque você é assim. Se eu for falar com os pais, vou me emocionar com a reação deles, talvez perder a objetividade e…

― Um homem viril, mas de coração mole ― revidou Júlia.

― Por quê, não posso ser emotivo? Já você é sempre racional, não importa quais sejam as circunstâncias.

― Não concordo, também sou humana, só não sou transparente como você. Não demonstro o que não interessa… Mas deixa pra lá! Não me custa fazer esse serviço.Vou levar ajuda, não confio nesse Severino.

― Preconceito contra nordestinos?

― Não amola, Thales! Você sabe muito bem que não sou preconceituosa. Minha família também veio do Nordeste.

― Então por que não confia no Severino?

― Sei lá… Talvez porque ele esteja nervoso demais…

― Preconceito!

– Além disso, eu detesto o povo da Granja Viana, aquele gueto de gente rica, de nariz empinado. Eles sim são preconceituosos.

Júlia partiu para a Granja Viana levando consigo dois policiais. Todas as casas foram encontradas e os pais alertados. Cada família informada era tomada por enorme desespero. É muito doloroso perder uma criança… Júlia lembrou-se de quando sua irmãzinha de três anos se perdera na praia, do desespero que sofreu e da alegria quando encontraram a criança, mas conteve as emoções.

Pouco tempo depois, os pais começaram a chegar à delegacia a pressionar o delegado pela solução do crime e, quem sabe, obter alguma informação que aliviasse suas dores.

Enquanto os atendia o delegado Thales Duran foi interrompido por um ajudante que lhe trouxe um pequeno embrulho onde estava escrito: “Veja as crianças”. Dentro havia um pen drive. Imediatamente ele  inseriu o objeto no computador e mostrou aos pais. Era um vídeo sobre o rapto. As imagens mostravam as sete crianças, entre 3 e 5 anos, lado a lado encostadas numa parede, quase todas chorando, fato que desencadeou desespero maior entre os pais.

― Silêncio, por favor. Há um áudio gravado na sequência. Vamos ouvir ― pediu o delegado.

Era uma voz de homem, potente, clara, dicção perfeita. Dizia: “Crianças pobres não comem durante as férias. O governo federal deve decretar que as escolas alimentem as crianças mesmo fora das aulas, senão… A cada semana de demora matarei um criança. Na próxima sexta-feira às 12 horas será a vez da primeira delas. Se assinarem antes, libertarei todas”.

Cópias do mesmo vídeo que o delegado Thales recebeu chegaram também às emissoras de televisão e foram veiculadas para todo o Brasil. A comoção pública foi intensa, houve até repercussão internacional. Cada entrevistado que a imprensa abordava sobre o assunto concordava com o sequestrador ― o presidente tem de assinar o tal decreto.

A solução da questão não era simples. Num país onde a educação era relegada a segundo plano, onde a pouca verba destinada às escolas era roubada no meio do caminho por funcionários do próprio governo ou por partidários políticos e associados…  Primeiro, o governo teria de aceitar as exigências, mas nenhum governo deseja, publicamente, negociar com bandidos, embora seus membros sejam os próprios corruptores. Em segundo lugar, seria necessário aumentar as verbas para a educação, em dobro é claro, pois metade seria desviada no caminho como de praxe.

O presidente tentou jogar a responsabilidade em outros ombros. Convocou os ministros da defesa, das forças armadas e da justiça para uma consulta. Estes opinaram que não deveriam negociar com o bandido, mas trabalhar para prendê-lo antes que o prazo dado por ele se esgotasse.

O delegado Duran colocou toda sua equipe, todos os recursos que tinha à mão para resolver a questão, mas a fatídica sexta-feira chegou sem que ele tivesse descoberto pista alguma. Poucos minutos depois de vencido o prazo, uma emissora de televisão recebeu um vídeo que divulgou para a estupefação dos telespectadores de todo o país. As imagens eram terríveis: primeiro aparecia uma linda garotinha, a mais nova do grupo, sorrindo ao chupar um picolé. Em seguida, a mesma menina era mostrada deitada, pescoço sangrando, inerte, provavelmente morta.

O objetivo do sequestro era nobre, mas os meios…

Como em toda crise, era preciso apontar um bode expiatório. Escolheram então o Delegado Thales, acusado de incompetência. Chegaram a ameaçá-lo de expulsão da polícia. Em sua luta para a resolução do caso, e agora muito pressionado, ele foi a Brasília. Conseguiu uma audiência com o presidente, quando implorou para que fosse assinado o decreto solicitado. Ouviu, porém, que não houvera tempo para tomar todas as medidas necessárias sob a desculpa de que a proposta empacara no Congresso. Foi então que o delegado apresentou uma solução:

― Senhor presidente, o sequestrador não pede que o decreto seja colocado em prática em uma semana. As crianças já voltaram às aulas e estão recebendo alimentação. O que ele pede é que o decreto seja assinado pelo senhor neste prazo. As próximas férias acontecerão somente daqui a 4 meses, tempo suficiente para executar o decreto ou até mesmo revogá-lo se achar correto. Por ora basta assinar, para impedir que outras crianças sejam assassinadas. O bandido mostrou que não brinca, mata ― propôs o delegado, envergonhado por haver apresentado a opção de revogação futura do decreto no intuito de convencer o insensível presidente.

Depois de muita discussão na cúpula do governo, a proposta do delegado foi aceita. O presidente assinou o decreto e a imprensa divulgou o fato imediatamente. No mesmo dia a polícia foi avisada pelo sequestrador de que as crianças tinham sido libertadas ilesas, na beira da rodovia que conduz à Granja Viana.

Entre as crianças libertadas estava a menininha que no vídeo parecia ter sido assassinada. Ela estava bem viva e alegre por voltar aos braços da mãe. Sua imagem, aparentemente morta, era apenas uma montagem, uma artimanha do raptor.

Será que quando a férias chegarem as crianças pobres não mais sentirão fome?

 Compartilhar no Facebook

1 Comentário

  1. fkh
    30 out 2022

    I do nnot knoww whether it’s just me or iff everyboxy
    els experiencing problems witgh yoyr blog. It appears as though somne of the
    written texdt on yoiur content are running off the
    screen. Caan someone else plase conment aand let me khow iif this is hawppening to
    thwm too? Thhis might be a problwm wwith my wweb browsaer because
    I’ve haad this hawppen before. Maany thanks

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *