Vermes esverdeados

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De uma caravana que passava, um menino de dois anos foi abandonado nas areias quentes pelo pai que duvidava daquela paternidade.

O pequeno olhou a redor, só areia, céu azul, luz implacável e abutres girando no alto. Sede e fome, decidiu procurar: um pouco andando, outro pouco engatinhando. Ao longe, as risadas doentias das hienas famintas.

Deparou-se com os restos mortais do cachorro. Primeiro acariciou o animal, depois… A fome apertou e ele deu a primeira mordida numa pata, depois noutra… A fome era tanta que nem se incomodou com os vermes que se desprendiam da carne podre, continuou devorando os restos do animal, sua barriga inchando, doendo, perto de explodir.

O fedor da podridão e a carne decomposta reviravam seu estômago. Vomitou.  Voltou a comer, agora o vômito, mais fácil de mastigar, sobretudo os vermes esverdeados, macios.

Ao longe, tiros. Era um helicóptero munido de metralhadora que um fugitivo do hospício conseguira roubar e agora sobrevoava o deserto, matando tudo que, no chão, se movesse. Avistou a caravana que abandonara o menino. Disparou. Não sobrou viva alma, regando de sangue o chão de sedentas areias.

O menino ouviu os tiros e tranquilizou-se, eram como os barulhos que ouvia na televisão. Mas os abutres logo se afastaram, prevendo o perigo que chegava voando.

Ele, empanturrado de carne podre e vermes esverdeados que deslizavam entre seus dentes, não conseguia olhar para cima devido à luz queimante, mas ouviu o aparelho se aproximar. Esgotado pelo esforço de devorar o cão, deitou-se, a barriga inchada olhava o sol…

O monstro metálico voou baixo, localizou o alvo e distribuiu tiros que atingiram a barriga da criança. A pele rompeu, o inchaço explodiu, libertando os vermes, eternos sobreviventes. Então os abutres regressaram. O petisco estava no ponto ideal. Começaram bicando os olhos secos…

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1 Comentário

  1. RUBENS RUSCHE
    22 jan 2020

    Admirável retrato minimalista da indiferença da natureza diante da insanidade humana. “Sem ter outra alternativa, o sol voltou a brilhar sobre o nada de novo.”

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