Quem afundou o Titanic

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Balançava a rede de um lado pro outro, os pensamentos lidando com o dilema: fazer ou não a lição que a professora de literatura solicitara. Olhava o céu manchado de nuvens escuras e a inércia tomava conta dele.

– Vai chover, melhor ir pra cama – pensava, se espreguiçava, mas não se movia dali, balançando. 

         Foi então que sentiu aquela presença etérea, mas conhecida, uma voz que lhe falava, que discutia seus pontos de vista. Ela chegou dizendo:

         – Larga de preguiça, escritor! Pra que se matriculou na oficina? Agora tem que ir até o fim.

Para alguém que nasceu sob o signo de Áries, persistência não era seu forte.

         – O problema é que eu não sei o que escrever, mente vazia, sem inspiração, não consigo bolar nada – argumentou o escritor.

         – Inspiração é coisa de viado. Pra escrever basta pensar corretamente. Escolha um tema, conscientemente, e desenvolva, é simples.

         – Pra você tudo é simples, não faz nada mesmo, só vive me criticando.

         Silêncio.

– Mas que tema? – o escritor indagou quase suplicando. – Tudo me parece sem graça.

– Outra mariquice!

– Não consigo escrever sobre um tema que não me interesse pessoalmente, que não mexa com minhas entranhas.

– Tô dizendo… O que mexe com as entranhas é sexo. Estamos falando do quê?

– De literatura, é claro, de escrever uma lição que a professora mandou. – E ergueu-se da rede, como se estivesse decidido…

– Gostei de ver, pelo menos se levantou – ironizou a voz que só ele ouvia.

Entrou no escritório, sentou-se diante do computador, abriu um arquivo novo, ficou um tempão olhando pra tela em branco até que lhe veio uma ideia nada original: pegar alguma coisa velha, algo que tivesse escrito anteriormente e ver se dava para aproveitar.

– Isto é trapaça – acusou a voz. – Quem você pensa que está enganando, a professora? Ou a turma de escritores que aguardam seu trabalho para descer o pau?

– Eles não me assustam, são gente civilizada. O que me assusta sou eu mesmo, minha secura mental – rebateu o escritor.

– Está bem, já entendi seu drama. Vou lhe dar um tema, topa?

– Pode ser – o escritor aceitou, sem nenhum entusiasmo.

– A justiça divina! Este é o tema.

Antes de argumentar, recostou-se na poltrona, tentando entender a proposta.

– Sou ateu, você sabe disso. Nada entendo desse assunto.

– Claro que entende.

– Se não acredito que exista um deus…

– É apenas um exercício, idiota! Vou lhe dar uma dica. Dizem que antes do navio Titanic deixar a porto pela primeira e última vez, o capitão disse aos jornalistas: “Este veículo é o mais seguro do mundo. Nem Deus afunda esse navio!”

– E daí?

– Uns crentes que andam divulgando coisas deste tipo no Facebook, dizem que Deus afundou o navio para demonstrar seu poder, assim como mandou alguém matar John Lennon, porque este havia dito que os Beatles eram mais famosos do que Jesus.

– Está querendo me convencer de que Deus matou centenas de pessoas só pra castigar aquele capitão? Que botou um assassino pra acabar com o Lennon?

– Isso mesmo. Quer dizer, eu não quero convencer de nada. São os crentes que andam divulgando essas barbaridades na internet.

– Duvido que Ele fizesse uma coisa dessas. Deus é amor, é bondade, é pai…

– Ah! Virou crente de uma hora pra outra? – zoou a voz. – Está falando como os eles. Lembra-se do jornal da manhã, do acidente?

O escritor lembrou-se do noticiário que exibiu os destroços de um avião que caíra na selva. Todos os ocupantes haviam morrido menos uma garota adolescente. Em entrevista a um repórter ela disse: “Foi a mão de Deus quem me salvou”.

– Ele salvou a garota e matou os outros, certo? – concluiu a voz que lia todos os seus pensamentos.

– Não necessariamente – argumentou o escritor. – Deus salvou a menina e o Diabo matou o resto.

– Kkk. Agora acredita também no diabo?

– Melhor parar com essa conversa. Você está me confundindo, abalando meus pensamentos, minha cabeça está esquentando…

– Calma, estou brincando. Isso é apenas um exercício de literatura.

Ele se levantou, foi à porta, respirou fundo, mas voltou a dar atenção à sua voz interior. – Está bem, vamos continuar. Se não foi o diabo quem matou, pode mesmo ter sido Deus, mas somente se considerarmos que as pessoas que morreram não mereciam ser salvas. Deus não matou, apenas deixou que morressem.

– Se isso satisfaz sua consciência…

– Não é você minha consciência?

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