O Cordeiro

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Três quarteirões até chegar em casa numa tarde quente, a mochila pesada de livros, o suor molhando, mais um dia inteiro de aulas chatíssimas, felizmente ficou para trás.  Jogar-me no sofá, ligar a tevê e não pensar em mais nada, era o filme que rolava em minha testa por dentro, meu desejo. Mas quando cheguei, o pesadelo começou.

Já estranhei a porta destrancada. Minha avó, já bem idosa, e a irmã dela, a tia que curtia brincar comigo moravam com a gente. Meus pais, policiais, eram muito preocupados com a segurança da casa, da família. Tudo bem trancado, cuidado pra chegar e pra sair de casa, sempre mudando a rotina para não serem pegos desprevenidos; por isso estranhei a porta aberta e o silêncio. Fui entrando e, sem que eu percebesse de onde, apareceu um homem encapuzado que me agarrou por detrás, apertou minha cara com a mão enorme, tapou minha boca – à toa, eu nem pensava em gritar.

Surgiram mais dois mascarados, me arrastaram pro quarto da minha avó, queriam que eu visse. Soltaram minha boca, mas nem consegui gritar. Minha vozinha, carinha assustada, tombada de lado, tiro na cabeça. A tia… Chorei naquela hora, entendi que ela não brincaria comigo outra vez.

Tudo piorou quando me levaram pro quarto dos meus pais. No caminho, me deram dois pescoções, não sei por que, acho que pra me apavorar ainda mais.  No quarto, uma coisa horrível: mamãe amordaçada, ajoelhada ao pé da cama, o rosto aguado em lágrimas, desesperou-se ao me ver, suplicava com um gemido sufocado. Do outro lado do leito, ainda sangrando pela cabeça, meu pai. Não posso esquecer, é como se estivesse acontecendo agora, os olhos dele ainda abertos pareciam ver algum demônio.

Terminariam a chacina, matariam minha mãe também se eu não colaborasse, disseram. Eu era ainda um adolescente, mas sabia reconhecer um soldado – afinal cresci vendo o jeitão dos meus pais. Por isso achei que aqueles homens eram policiais. Deviam pertencer ao grupo de extermínio que meu pai disse ter denunciado a tal da Corregedoria. Bem que minha mãe andava nervosa nos últimos dias, sempre olhando pela fresta da janela…

O que esperavam de mim, que colaboração, eu não sabia. Em meu quarto fui trancado até anoitecer. Então me trouxeram um pedaço de pão em copo de leite e voltaram a me trancar. É claro que não consegui dormir, fazia planos para escapar, chorava por meu pai, pela vovó e a titia… Não consegui enxergar nenhuma saída pra situação, e decidi que o melhor era fazer o que mandassem pra salvar minha mãe.

Quando amanheceu, um dos bandidos descarregou um revólver e colocou dentro da minha mochila. Mandou que eu e fosse pra escola com uma tarefa: além de assistir às aulas sem deixar que ninguém percebesse que estava nervoso e com medo, eu devia tentar convencer pelo menos um de meus colegas de que tinha matado meus pais e avós, e mostrar o revólver.

Fiz o melhor possível. Com rosto vermelho de vergonha menti pro meu melhor amigo. Não sei se ele acreditou, tinha um olhar de dúvida, mesmo depois de ver o revolver. Foi difícil mentir pra ele, senti um aperto na boca do estômago, mas continuei fingindo, temia que os bandidos achassem que eu não havia me esforçado o bastante e matassem minha mãe. Via espiões por toda parte seguindo meus passos.

A volta pra casa foi terrível. Em parte do trajeto, fui acompanhado por dois colegas. Eles estranharam minha palidez, chegaram a perguntar se eu estava me sentindo mal. Neguei, é claro. Inventei que não havia dormido bem por causa de uns gatos no cio encima do telhado. Quando nossos caminhos se separaram, um suor frio molhou meu corpo. Em minha imaginação, cada passo que eu dava adiante, era como se estivesse na prancha do Capitão Gancho, caminhando em direção ao mar. Fiquei um tempo parado na porta de casa, receoso de entrar. Então apareceu um deles, já sem capuz, que me puxou para dentro.

Estavam desmascarados – já não temiam que eu visse seus rostos. Quiseram saber se eu havia cumprido a tarefa que me haviam dado, se tinha convencido alguém dos crimes. Confirmei, jurei que meu amigo tinha acreditado. Então, fui levado direto pro quarto de meus pais. Nem consegui gritar – minha mãe estava morta, debruçada sobre a cama, se escorrendo no lençol. As pernas bambearam, tudo escureceu, acho que desmaiei e caí no tapete.

De repente, aconteceu uma explosão luminosa e me vi solto no ar. Do alto, via meu corpo que os bandidos ajeitavam. Haviam atirado em minha cabeça, colocavam a arma na minha mão, montavam cena para que eu levasse a culpa por toda aquela chacina. Depois saíram, sem levar nada. Fiquei ali por pouco tempo…

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