O Vulcão de Colima
Olhei pela vidraça do apartamento. Chovia e, lá de cima, eu observei sulcos brilhantes que pneus de carros deixavam no asfalto molhado. Melancolia. Tive vontade de escrever, da mesa, ela me chamava, minha única e fiel companheira há muito tempo: uma velha máquina de escrever do século vinte.
A cadeira de balanço, ali, quase à minha frente, fez-me um convite e a preguiça venceu. Fui até ela e toquei-a suavemente como se tocasse o braço da mulher amada. A cadeira balançou por alguns instantes no mesmo tom em que fora tocada, e parou. Sentei-me. Recostei a cabeça no respaldar alto e comecei a balançar-me devagar.
Depois, fechei os olhos disposto a meditar. Foi então que percebi com clareza um distúrbio em minha tela mental, uma sombra que pairava sobre os pensamentos. O quê seria?
Senti um leve tremor que não me assustou. Em Colima, onde morava, cidade mexicana incrustada no sopé de um vulcão vivo – o Volcán de Fuego” –, todos os dias aconteciam pequenos tremores, tantos que já passavam despercebidos pelos que ali viviam.
No começo, pensei que fosse tontura devido à labirintite, coisa da idade. Mas a tontura logo aumentou e tudo começou a trincar, rachar, desmoronar, lento o suficiente para que eu tivesse tempo de ver as paredes se dobrarem sobre os móveis, as madeiras destroçadas, estilhaços de vidro, o teto desabando…
Aquele era um terremoto bem maior que os outros. Aquela sombra mental que transpassara meus pensamentos um pouco antes seria um aviso, uma premonição do que iria ocorrer?
Minha querida cadeira foi jogada para um canto da sala, comigo sentado. Escuridão. Estrondos, ao longe, gritos.
O apartamento ficava no terceiro andar, mas então, onde estaria? Percorri meu corpo com as mãos, cuidadosamente, para ver se estava tudo no lugar. Estava, nenhum ferimento.
Amedrontado, porém, o corpo dolorido, um pouco de velhice, outro pouco pelo baque de ter sido arremessado, calculei que devia estar em algum lugar no andar de baixo.
Apesar de tudo, misteriosamente, sentia-me bem, como se o pior já houvesse passado, mas não. Eu estava aprisionado, indefeso. Tateei ao redor, havia pouco espaço, eu estava encaixado num canto, espremido entre paredes, poeira ainda escorrendo sobre minha cabeça.
Durante um longo tempo permaneci imóvel, receoso até de respirar, sentia que o prédio ainda rachava, gente gritando…
Não sei depois de quanto tempo o silêncio voltou a pairar, vozes longínquas. Então, meu pé esbarrou em algo sólido, um estalido metálico. Levei as mãos e reconheci minha fiel máquina de escrever, humilde, caída aos meus pés.
O encontro trouxe-me tanta alegria como se tivesse reencontrado a cachorra de estimação. Com esforço, consegui erguê-la e colocá-la em meu colo. Acariciei suas bordas, as teclas, quase podia ler cada uma na escuridão apertada do meu túmulo provisório.
Tentei escrever, mesmo sem papel, por puro vício. Meus dedos, que conheciam todas as letras, soltaram-se sobre o teclado. O primeiro ímpeto foi de fazer um breve apanhado de minha longa vida, naquela hora, curta demais. Deveria ser algo sintético, um epitáfio talvez.
Porém algo me distraiu. Nunca tinha ouvido com tanta clareza o som das teclas batendo no rolo de borracha. O som surdo marcava um ritmo e uma melodia rudimentar que se criava no teclar das palavras, um diálogo com minha fiel companheira sobre nossos momentos finais. Como era belo ouvir a música das frases, dos períodos, do ponto. O belo e o terrível convivendo naquele instante.
Quanto tempo eu teria de vida? Seria resgatado? E o oxigênio? – eram questões que não conseguia evitar. Diante da morte iminente, tais indagações me levaram a repensar a vida. Uma estranha conclusão ecoou em meu cérebro: vivi num planeta onde a lei suprema determina que todos os seres devem comer uns aos outros para sobreviver… Ruminei as vidas que fui lembrando ter engolido, mau-gosto na boca, não comeria mais ninguém, jurei, nem alfaces, nem… Lembrei-me da última refeição – mastigara as coxas de uma franguinha.
Depois, coisas mais pessoais entraram no campo da memória, os entes queridos… Achei interessante constatar que, naquela hora, tudo tinha o mesmo peso, apenas imagens e emoções cristalizadas, provavelmente por pouco tempo, como um gibi que depois de lido seria descartado.
Ali esperei, concentrado no ritmo das palavras que dedilhava, até que os pensamentos começaram a falhar – breves apagões, a consciência ia e voltava aos trancos, o oxigênio acabando junto comigo.
No texto, que no escuro e sem papel escrevia, despedia-me da vida, sem mágoas, sem carregar na consciência nenhuma ingratidão que houvesse cometido, sem arrependimentos. Entreguei-me à morte com tranquilidade, as teclas descrevendo minha passagem, quando, de repente, um cão, que também ouviu a música da minha máquina, latiu bem perto.
Logo depois, um buraco de luz abriu-se, uma lufada de ar bondoso, e o rosto sorridente de um bombeiro.
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