Fundo do Céu
A
De onde foi que tiramos essa ideia de anjos ou homens voadores?
Na milenar cidade de Nippur, 150 quilômetros ao sul de Bagdá, arqueólogos descobriram uma biblioteca completa, contendo cerca de 60 mil plaquetas de barro com escrituras cuneiformes que descreviam todos os aspectos da vida dos habitantes da Suméria que existiu aproximadamente há 13 mil anos: o dia-a-dia, a estética, a política, a filosofia, a cosmologia e sobretudo seus governantes. Os esforços para se traduzir tais plaquetas só alcançaram resultados confiáveis na segunda metade do século XX.
As mais recentes traduções dessas inscrições revelam com clareza uma versão intrigante da origem do homem e da história deste planeta.
A “História Oculta”, narrada ao longo deste romance é uma breve síntese dos textos das plaquetas encontradas no Oriente Médio. Nessas plaquetas haviam obras célebres como a “Epopeia da Criação”, de onde se originou o Gênesis da Bíblia.
Como explicar que tais plaquetas falassem de Netuno, Urano e Plutão há 13 mil anos, que não são visíveis a olho nu e só foram descobertos nos séculos XIX e XX, quando aperfeiçoamos os telescópios?
Pelo que se depreende da leitura de seus textos, o conhecimento que os sumerianos tinham naquele tempo era superior ao que temos hoje em muitas áreas do saber. Existem desenhos sumerianos que não apenas mostram a existência de todos os planetas como também descrevem com exatidão suas características físicas, medidas e distâncias.
Nossa civilização pouco sabia a respeito dos planetas além de Marte até 1996, quando a NASA lançou a sequência de espaçonaves Voyager.
As naves alcançaram os planetas mais distantes e seus relatórios confirmaram, sem sombra de dúvida, as escrituras da Suméria. Confirmaram as cores, os tamanhos, o número de satélites, a existência de água, a inclinação de Urano.
Existem diversas publicações sobre este tema que foram realizadas por arqueólogos. O mais importante deles é Zecharia Sitchin, o maior expoente na tradução dos textos sumerianos. Sitchin era consultor da NASA e escreveu algumas obras sobre o assunto, já traduzidas para inúmeras línguas. Seu trabalho está incluído nos programas de estudo de diversas universidades dos Estados Unidos e Europa. A História Oculta aqui narrada não é uma invenção, é a síntese de uma longa história que foi documentada nas plaquetas sumerianas.
Fundo do Céu é um conceito astrológico que marca o ponto de busca pelas origens.
FUNDO DO CÉU
PRIMEIRO CAPÍTULO
Luz horizontal difundia-se cegamente através da densa neblina que orvalhava sobre a floresta sedenta. Amanhecia. O topo do pinheiral delineou-se primeiro, mas não antes do galo bater asas e soltar o canto inventor do tempo.
Lúcio abriu a janela, encheu o peito de ar fresco e ficou imaginando que o giro da Terra o avançava em direção ao Sol até alcançar sua luz, o dia. Como fazia quase todas as manhãs, encheu uma caneca de café, sentou-se na borda da varanda, tirou as sandálias de couro e pousou os pés na terra fria.
Sol clareando a noite, ar refrescando o peito, verde surgindo por todos os lados em seus múltiplos tons… Foi quando ele percebeu um clarão rápido e sutil acima do arvoredo. Na hora, atribuiu o evento a alguma sequela onírica em suas sonolentas pálpebras ainda povoadas dos sonhos da madrugada. Mas em seguida teve outra impressão curiosa – um silêncio dramático pairando sobre o piar dos pássaros, o cacarejo das galinhas, as rajadas do vento. Um silêncio por detrás. Talvez fosse uma expectativa inconsciente. Talvez algo nele soubesse do futuro próximo, e tentasse avisar.
A hora era mágica, o lusco-fusco. Alvoradas e crepúsculos com ele se harmonizavam bem, pois Lúcio sempre se sentira um ser indefinido, nem isso nem aquilo, nem macho nem fêmea, nem homem nem animal… Tinha muita dificuldade em se encaixar num rótulo qualquer.
A casa dele ficava no topo de uma montanha. Se de um lado amanhecia, do outro ainda era noite. Da noite, como uma fagulha expelida pela escuridão, surgiu um gavião dos grandes. O galo vermelho, senhor do terreiro, dono de impressionante capacidade visual, detectou o perigo e trinou longamente, denunciando o predador. As galinhas permaneceram imóveis, invisíveis. Alguns pintinhos, a presa favorita dos gaviões, imprudentemente haviam se afastado do bando. Quando perceberam que não havia tempo para chegar debaixo das asas das mães, puseram-se a salvo entre as folhagens baixas.
Da varanda, Lúcio acompanhou o majestoso voo do caçador cruzando o céu, as afiadas asas de ponta branca passando acima de sua cabeça e desaparecendo no horizonte oriental, justo num ponto onde as árvores se espaçavam e deixavam ver um pedaço do caminho de terra batida que ligava sua casa à estrada municipal.
Exatamente naquele ponto do caminho viu alguém, um vulto que se aproximava a pé. Estranhou, pois raramente recebia visitas não anunciadas. As poucas pessoas que ali chegavam vinham de carro.
Quando o vulto reapareceu no caminho, já mais perto da casa, ele percebeu que se tratava de uma senhora envolta num manto, caminhando com dificuldade.
Foi ao encontro dela.
Era uma mulher velha e encurvada, aparentemente em péssimo estado de saúde, que lhe estendeu o braço suplicante, a mão enrugada, e ao tocá-lo desfaleceu. Sem pensar no que fazia, ele carregou a senhora para dentro e acomodou-a num divã. Muito suja, descalça, um manto esfarrapado, seus cabelos longos e pastosos cobriam-lhe grande parte do rosto. Sob a tênue luz de raios de amanhecer que atravessavam as rendadas cortinas da sala, ela parecia uma velha moribunda.
Uma sensação desagradável, sobretudo incômoda. Ainda por cima, a mulher tinha pequenas crostas na pele, como feridas… Talvez fosse leprosa ou coisa pior, poderia contaminá-lo… Só um louco abrigaria uma estranha empestada em sua casa, ele pensou.
Voltando à superfície da realidade, a mulher entreabriu os olhos avermelhados e balbuciou a palavra fome.
Rápido, ele foi buscar leite na cozinha, a primeira coisa que lhe ocorreu. Ela ergueu a cabeça com muito esforço e conseguiu beber meio copo.
– Banho? – ela pediu em seguida.
“Que nojo!” – ele sentiu e pensou. Num instante visualizou toda a sequência de cenas degradantes que teria de atravessar para cumprir o pedido, mas para seu próprio espanto nem hesitou em atendê-la. Carregou a mulher até o banheiro e antes que tivesse que passar pelo constrangimento de despi-la e deparar-se com um corpo corroído, ela fez um gesto com a mão que ele entendeu no ato. Colocou-a sentada sobre a banqueta e retirou-se.
Enquanto ela se banhava, Lúcio foi pra sala. Sentou-se e dirigiu sua atenção para dentro, vasculhando os próprios sentimentos. A repugnância física que a mulher lhe causara impregnava o subtexto de seus pensamentos, mas a energia que circulava em seu peito era tranquila, acolhedora. Relaxou.
Meia hora depois, ela entrou na sala vestida com o roupão de banho dele. Lúcio arregalou os olhos incrédulos diante da nova mulher que se apresentava. Bem mais jovem, cabelos claros crescidos até os ombros, corpo trabalhado, olhos de mel que brilhavam demais e um sorriso cativante. Ela ficou ziguezagueando de um lado pro outro como se experimentasse um novo corpo. Depois falou com uma voz suave, com um leve timbre metálico que a princípio lhe causou estranheza.
– Estou muito agradecida pelo banho, pelas roupas e o leite, pelo carinho que me ofertou. Tomei a liberdade de usar seu roupão, se importa?
Lúcio não conseguiu responder, boquiaberto diante daquele novo ser.
– Eu sabia que você era a pessoa certa pra me ajudar. É um prazer conhecê-lo pessoalmente, Lúcio – e estendeu-lhe a mão forte e macia.
– Já me conhecia? – ele perguntou tímido.
– Indiretamente – ela respondeu, analisando o anfitrião, dos pés à cabeça, descontraída como se estivesse diante de uma vitrina de loja, coisa que o inquietou ainda mais.
– E você, quem é?
– Pode me chamar de Dália – respondeu de lado, o que deu a ele a impressão de ela estar inventando o nome naquela hora.
– E essa transformação que aconteceu em seu corpo depois do banho?
– Estava exausta e muito suja, desidratada.
– Nunca tinha visto um banho fazer tanto bem a uma pessoa…
– Queria testar sua compaixão.
– Compaixão? Disse que eu era a pessoa certa pra lhe ajudar? Quem é você? Porque quis testar minha compaixão? – ele falou, soltando as perguntas como uma saraivada de balas.
– Preciso de você. Preciso lhe contar a História Oculta.
Então era apenas isso: mais uma pessoa querendo lhe oferecer trabalho. Lúcio era jornalista. Trabalhava em casa e andava numa fase muito atarefada. Já ia rejeitar o convite quando a mulher aproximou a mão e tocou-lhe de leve no rosto. Ele estremeceu como se recebesse um leve choque, e ela pendeu a cabeça e dormiu instantaneamente.
Uma mulher belíssima dormindo em sua sala, parte do corpo à mostra pelo roupão entreaberto… – a mente dele ia fotografando as imagens e produzindo legendas para futuras fantasias.
Desde a chegada da mulher, Lúcio sentia que algo indefinível se deslocava nas subcamadas de sua percepção. Enquanto sua mente se confundia, suas vísceras produziam um intenso movimento, um calor.
Cutucou duas vezes o adormecido corpo da mulher para certificar-se de que era real. Com facilidade providenciou para que ninguém se aproximasse da casa. Postou-se ao lado dela, hipnotizado. A figura dela ativava suas memórias. Relembrou com nitidez momentos marcantes de sua infância.
Tinha seis anos, quando os dias se estendiam longamente e o tempo era súdito da imaginação, o que dava uma sensação de descontinuidade. A descoberta dos nomes, dos limites, da sexualidade infantil. Ele tinha a impressão de ter os olhos maiores que o corpo de tão curiosos que eram, sempre querendo descobrir o que estava por detrás das aparências. Seu pano de fundo emocional se agitava em constante apreensão, o temor de não se encaixar naquela família tradicional. Filho de pai ausente, crescera junto aos avós metodistas ferrenhos, e por isso o cristianismo fora uma filosofia bem presente em sua infância. Gostava das histórias bíblicas que seu avô lhe contava pra que dormisse. Ia à igreja toda semana, na escola dominical.
Desde então, ele já se sentia à margem da sociedade, como se não pertencesse ao mundo das pessoas. Mas não é assim que se sentem todas as crianças?
Foi naquele ano que ouviu os adultos comentando que um rapaz que morava na vizinhança estava tuberculoso e ia morrer. Com infantil humildade, em secreta oração, pediu diretamente a Deus que fizesse um milagre e salvasse aquela vida. Promessa nenhuma fez porque acreditava na generosidade divina.
Não é que na semana seguinte o rapaz melhorou?! Voltou a engordar, a sair de casa, e Lúcio ficou muito orgulhoso do milagre que atribuiu à sua intervenção junto a Deus. Entretanto, algo lhe dizia que devia manter aquilo em segredo, que guardasse seu orgulho pra si, e assim teria um pacto secreto com o ser supremo.
Meses depois, viu o rapaz passar em sua porta. Parecia forte, talvez gordo. Uma tia que estava ao seu lado comentou: – Não é músculo nem gordura. É inchaço. Desta vez ele não escapa!
O rapaz faleceu um mês depois. Lúcio sentiu uma frustração terrível, uma divisão interior, algo forte demais para um menino de seis anos – a primeira decepção com o Grande Pai. Ora se penitenciava pelo atrevimento e presunção de ter achado que poderia realizar um milagre, ora culpava o próprio Deus por sua incompetência. A partir de então começou a duvidar da bondade divina.
Outro momento que relembrou com nitidez acontecera seis anos depois. Completando os doze anos, Lúcio seguia o caminho natural de todo menino metodista – fazer a profissão de fé, algo semelhante à primeira comunhão da igreja católica e ao bar-mitzvá dos judeus.
Houve um cursinho para decorar as respostas que teriam que dar ao “pastor” diante do altar e de centenas de “irmãos” no culto de domingo. Todos os parentes possíveis lá estavam, a igreja lotada.
Eram umas dez crianças colocadas ao redor do altar. Lúcio ajoelhou-se disposto a deixar suas dúvidas de lado. Estava emocionado, ansioso para entregar seu coração a Deus e sentir seu amor de uma vez por todas.
No entanto, algo extraordinário aconteceu.
Sem aviso prévio, dúvidas cruéis invadiram sua mente, e a cada pergunta do pastor, enquanto sua boca repetia as afirmativas decoradas, sua mente e seu coração diziam: não!
Fingiu até o fim da cerimônia e também depois, na saída, quando todos vieram cumprimentá-lo e desejar que ele jamais se afastasse do caminho da retidão. Mas em suas entranhas entendeu que a tal retidão não era pra ele. A partir daquele dia começou a inventar desculpas pra não voltar à igreja, e depois dos quatorze anos nunca mais voltou.
Foi seu primeiro ataque de consciência pessoal. Desde então manteve certo ceticismo em relação a tudo o que não pudesse perceber através dos cinco sentidos. Aos doze anos já duvidava da justiça divina.
Das recordações Lúcio mergulhou no sono, estirado na poltrona ao lado de Dália. Atravessou algumas horas debatendo-se com figuras do passado, até que imagens apavorantes de sua casa desmoronando o acordaram. A primeira coisa que pensou foi que sonhar com a própria casa desmoronando é sinal de que algo muito drástico está para acontecer. Logo esqueceu tal pensamento ao perceber que a mulher havia desaparecido. Buscou por todos os cômodos e nada.
Saiu pra fora. Deu uma volta na casa e, ao invés de encontrá-la, deparou-se com um carro da polícia que se aproximava e estacionava na frente da varanda. Dois policiais desceram.
– Estamos procurando uma mendiga que foi vista rondando sua casa esta manhã – disse um deles sem preâmbulos.
– Isto aqui é uma propriedade particular, senhores. Posso saber por que foram entrando assim, sem autorização?
– Pro seu próprio bem. Procuramos uma criminosa fugitiva.
Só podiam estar falando de Dália. Lúcio não titubeou e foi logo procurando um jeito de protegê-la.
– Desculpe, mas não sei do que estão falando.
– Podemos entrar pra verificar?
– Eu posso saber quem são vocês?
– Somos policiais.
– Posso ver seus documentos?
Mostraram os distintivos. E agora? O que observar num distintivo para saber se é falso? Lúcio ficou apenas balançando a cabeça de leve como se estivesse aprovando os documentos apresentados. Em seguida, os militares retomaram os distintivos, entreolharam-se com uma expressão neutra e passaram por ele como se não existisse.
Nem bem entraram na casa, já saíram apressados. Não deram nenhuma satisfação, nem se despediram. Entraram no carro e desapareceram na estrada.
Só então Lúcio conseguiu se mover. Perguntas e mais perguntas pipocavam dentro do cérebro, que se fracionava como se quisesse expandir-se e despencar da cabeça, como se precisasse crescer para entender a sequência dos fatos. A misteriosa chegada daquela mulher, sua espantosa transformação após o banho, o sono profundo, o sumiço repentino, os dois policiais com cara de cera… Entrou em casa e verificou que os homens não haviam tocado em nada.
De tarde, começou a ter breves alucinações que vinham e sumiam sem a menor razão aparente. Faixas de arco-íris facetadas atravessavam sua visão. Sensações desconhecidas alteravam sua temperatura, provocando súbitas ereções que alimentavam fantasias. Agulhadas nos pés, nos dedos, nos terminais energéticos…
O telefone tocou, tirando Lúcio daquele estado. Era ela.
– Precisamos nos ver novamente.
– Sim – ele respondeu prontamente.
– Estarei esperando no restaurante Manga Rosa daqui a quarenta minutos – e desligou.
Ela sabia tudo a seu respeito? Sabia que se ele se apressasse, dirigindo seu carro em direção à metrópole, poderia chegar ao seu restaurante predileto em quarenta minutos, pouco mais, pouco menos. Como ela poderia saber disso? Porém, as dúvidas não eram empecilhos para sua ação.
Entrou no carro e disparou pro restaurante.
Três quilômetros de estrada de chão batido ele cruzou aos trancos em alta velocidade, indiferente aos buracos. Entrou na rodovia em velocidade máxima, pois o trânsito estava manso naquele horário. Sempre que dirigia na estrada, sua mente se acelerava e ficava inventando novos projetos, resolvendo problemas. Mas naquele dia ela apenas emitia flashes dos detalhes de Dália, do olho, da boca, dos seios pontiagudos.
O restaurante Manga Rosa estava lotado, com fila de espera. O lugar era famoso por sua culinária baseada em frutos do mar e pela boa recepção dos atendentes. Da entrada, facilmente Lúcio localizou a mulher que se destacava como se um halo de luz a envolvesse. Estava à sua espera, sentada à mesa do fundo, diante de uma garrafa de água e dois copos.
– Vamos beber à nossa saúde – ela propôs assim que ele se sentou.
Brindaram. No fim do primeiro gole, um susto. Lúcio teve a impressão de que tudo ao redor se afastava num zoom lento. O burburinho das mesas se afastando, os rostos saindo de foco. Estavam praticamente sós, como se uma redoma os isolasse. Durante todo o tempo que durou o encontro nenhum garçom ousou se aproximar da mesa.
– O que foi isso que aconteceu aqui? Você viu? As pessoas se afastaram…
– Impressão sua – ela disse.
– Impressão minha? Não percebeu que…
– Ilusão de óptica – ela insistiu, passando a língua pelos lábios, prendendo sua atenção, fazendo-o esquecer a estranheza dos instantes anteriores.
– Fugiu da minha casa? – ele perguntou.
– Fugi. Não de você.
– Fugiu dos homens que vieram procurá-la? – ele arriscou adivinhar.
– Então eles foram até a sua casa? Eu sabia. Eles fazem parte das hostes opostas. São inimigos. Vão tentar impedir meu trabalho mesmo que tenham que usar violência.
– Violência contra você?
– Contra mim e contra quem estiver me ajudando – ela disse.
– Espera aí. Você falou que precisava da minha ajuda e que as hostes inimigas podem usar de violência contra quem ajudar você? Está querendo me meter numa fria?
– Estou aqui para protegê-lo. Não se assuste, Lúcio.
– Proteger-me? Quer me jogar no fogo e depois me salvar? Que ótimo!
– Parece ironia, mas não é.
– Que trabalho é esse? Do que se trata?
– Vamos com calma. Sei que está ansioso, mas logo saberá de tudo.
– Os homens que vieram procurá-la disseram que eram da polícia.
– Mentira.
– Vieram no carro da polícia e me mostraram os distintivos. Está querendo me envolver em algo ilícito ou está brincando comigo?
– Nem uma coisa nem outra. Só preciso que você escreva uma história que eu vou lhe contar.
– Então é isso? Uma história? Nada mais?
– Apenas uma história.
– E o que tem essa história de tão importante para envolver policiais das “hostes opostas”?
– Perceberá a seriedade da questão ao longo do meu relato. Agora procure se acalmar, por favor.
Disse um por favor tão doce que Lúcio respirou mais fundo e soltou os ombros. Mas seguiu interrogando.
– Então, tudo o que quer de mim é que eu escreva uma história que vai me contar?
– Diria que essa é apenas uma de minhas metas no contato com você; a meta intelectual. Mas sempre trabalho em vários objetivos simultaneamente. Também tenho outras metas relativas a você e ao seu espaço.
Foi como se ele tivesse recebido uma cantada irresistível. De imediato sentiu que seria capaz das maiores loucuras para agradar aquela mulher. Mas sua mente ainda atrapalhava tentando argumentar entre prós e contras.
– Posso saber das outras metas? O meu espaço?
– Achei muito interessante o lugar onde vive. A topografia, a vegetação, a construção… Gostaria de observar melhor.
– É um prazer que conheça minha propriedade quando quiser. E que mais?
– Você é muito apressado. É de Áries, não é?
– Sim. Sou impaciente por natureza.
– Será muito bem remunerado.
– Sou caro.
– Eu sei. Tenho seu dossiê.
– Meu dossiê?
– Tive que pesquisar sua vida antes de escolhê-lo.
– E descobrir até que este restaurante…
– É o seu favorito – ela completou.
Subitamente ela olhou ao redor e se levantou.
– Com licença, devo ir agora – disse ligeiramente aflita, e saiu rapidamente, desaparecendo pelos fundos do restaurante.
Então a multidão do restaurante se reaproximou num zoom rápido. O falatório das mesas retornou ao normal, assim como tudo o mais naquele lugar. Um simpático garçom aproximou-se. Lúcio achou que estava alucinando. Desistiu de comer, e voltou pra casa bem mais confuso do que antes.
SEGUNDO CAPÍTULO
A casa de Lúcio era cercada por um pedaço do que restou da mata nativa aonde uma grande variedade de animais selvagens vinha se abrigar, fugindo das queimadas promovidas nas propriedades ao redor. Não passava uma semana sem que uma jaguatirica, um lagarto ou um cachorro do mato devorasse uma das galinhas. Isso não incomodava Lúcio nem um pouco. Era um amante da natureza e criava mais galinhas do que o suficiente para seu uso, para que sobrassem no quintal. As que eram comidas pelos predadores constituíam sua pequena cota de retribuição à natureza.
Lúcio escutou um alarido vindo de trás do galinheiro e foi ver quem atacava quem. Aproximou-se sorrateiro, pois se fosse uma bela jaguatirica poderia apreciar de perto o desenho de sua pelagem. Porém, era Dália que atiçava as galinhas, e se divertia com a coragem delas ao defender suas ninhadas. Procurando esconder a surpresa ou o espanto por outro estranho aparecimento daquela mulher, ele se aproximou lentamente.
– Desculpe invadir seu quintal assim – ela disse, num tom meigo.
– Você é sempre bem-vinda – ele respondeu, abrindo inteiro o sorriso.
Mais tarde, ele fazia café enquanto ela se deslocava pela residência sentindo o ambiente, coisa que não tivera tempo de fazer em sua primeira visita.
– Sua casa vibra bem. Deve ser influência do subsolo – comentou, colocando as palmas das mãos abertas, viradas pro chão, captando ondas que vinham de baixo.
À mesa, saboreando o café, trocavam olhares repletos de invisíveis anzóis. Ele não escondia um crescente desejo, porém continha-se. A mulher lhe parecia tão forte que ele preferiu esperar que ela desse um sinal de avançar.
– Gostaria de examinar seu terreno. Trouxe este aparelhinho que é muito útil – ela disse, tirando da bolsa um objeto pouco maior que um celular. – Vem comigo?
O outono derrubava o verde. Goiabeiras forravam o chão de frutos maduros, destilando um perfume levemente azedo. Já haviam atravessado todo o pomar desviando os passos das frutas podres quando algo chamou a atenção dela. Imediatamente, apontou o aparelho para um pedaço de pedra trabalhada que aflorava do solo.
– Veja Lúcio, isso parece ponta de ruína. Sabe o que é?
– Não faço ideia. Que aparelho é esse que está usando?
– Mede radiações e outras coisas.
– E pra que está fazendo essas medições?
– Sou arqueóloga. Pedras me interessam.
“Finalmente!” – ele pensou. – “Um dado concreto! Ela tem uma profissão!”
– E onde trabalha?
– Onde estiver. Faço pesquisa de campo. Sua montanha é muito interessante.
– Esteja à vontade para estudá-la o quanto quiser.
– Agora podemos começar nosso trabalho?
– Que trabalho?
– A história que vou lhe contar e que você vai escrever, esqueceu?
– Desculpe. Estava com a cabeça sei lá onde. Sua presença… Vamos entrar.
Voltaram pra casa mastigando goiaba. Enquanto ela comia delicadamente, pequenas mordidas, mastigação moderada, concentrada nos prazeres do paladar, ele observava sua boca em movimento. Lúcio tinha o costume de observar a boca das pessoas com quem conversava. Achava que a boca em si dizia muito mais sobre a pessoa do que as palavras pronunciadas. Nem é preciso dizer que pra ele a boca de Dália era perfeita. Nem grande nem pequena, os lábios superiores da mesma grossura dos inferiores, úmidos, cor de cereja, simétricos.
– Podemos começar? – ela propôs.
Embora estivesse mais interessado em continuar cortejando a mulher, só lhe restava concordar. Estava descrente de que a tal história devesse ser levada a sério. Ligou o gravador e ela começou a falar pausadamente, olhando firme no rosto dele, percebendo como sua mente recebia o relato.
HISTÓRIA OCULTA 1
Nossa história começa na formação da Terra. Antes, havia o Sol, rodeado dos planetas Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e mais um astro hoje desconhecido chamado Tiamat. Plutão era então apenas um satélite de Saturno.
Há bilhões de anos, vindo do fundo do céu, do espaço exterior, surgiu um astro magnífico chamado Nibiru. Passava ao largo quando foi atraído por Netuno, que era o planeta mais externo do nosso sistema. Desorientado pela misteriosa força netuniana que o desviava de seu velho caminho, Nibiru entrou no sistema solar no sentido horário, contrário ao movimento dos demais planetas.
Sua travessia provocou intervenções e catástrofes em quase todos os planetas. Passando perto de Urano, inclinou seu eixo. Depois veio em direção a Tiamat. O choque parecia inevitável.
Por sorte ou destino, os dois planetas não se chocaram diretamente, mas passaram muito próximos. Nibiru tinha 4 satélites. No encontro, o corpo principal de Nibiru sofreu apenas danos superficiais. No entanto, um de seus satélites, chamado Vento Norte, espatifou-se contra Tiamat, partindo-a ao meio.
Metade de Tiamat esfarelou-se pelo golpe, formando o cinturão de asteroides que ainda hoje permanece em órbita no mesmo lugar onde antes girava Tiamat. A outra metade de Tiamat foi lançada mais para perto do Sol e prendeu-se numa órbita entre Marte e Vênus.
Girando por milênios, essa metade de Tiamat que não se esfarelou transformou-se na esférica Terra. Em sua origem, a palavra terra significa resultado da divisão.
Para terminar sua tarefa desastrosa ou reformadora, Nibiru libertou Plutão de Saturno, lançando-o para os confins do nosso sistema solar.
Apesar de seu grande tamanho, Nibiru não conseguiu escapar da força gravitacional do Sol. Ficou preso ao nosso sistema com uma longa órbita elipsoidal de 3.600 anos terrestres, ou seja, leva todos esses anos para dar uma volta no Sol.
A vida orgânica já evoluía no solo de Nibiru. No choque, que uns consideram uma batalha e outros um coito, transferiu-se para a Terra a vida orgânica.
A Terra levou bilhões de anos para se curar do acidente, mas Nibiru pouco sofreu. Por isso, a evolução das espécies foi mais rápida lá.
Há 500 mil anos, a espécie dominante em Nibiru já tinha alcançado um nível tecnológico mais elevado do que temos agora. Usavam sapatos com os quais podiam voar, viajavam em naves interplanetárias, e com manipulação genética criavam as espécies animais ou vegetais de que necessitavam.
Os nibiruanos ressuscitavam seus mortos meio milhão de anos atrás.
O Panteão ou Conselho dos Doze é a entidade máxima da sociedade nibiruana, formado por seis nibiruanos masculinos e seis femininos, representantes dos doze signos astrológicos. Todas as resoluções importantes têm que passar pelo Conselho, mas o sistema político em Nibiru é uma monarquia patriarcal. A palavra final é do rei.
Há uns 450 mil anos atrás, o rei faleceu irremediavelmente. Nenhuma técnica de ressurreição conseguiu reanimá-lo. Deixou como herdeiro legítimo o príncipe Anu. Mas Anu era muito jovem e inexperiente para dirigir uma sociedade tão complexa. Com esses argumentos, Alalu, seu tio, conseguiu convencer o Panteão a lhe entregar a coroa real até que Anu estivesse apto.
Durante o reinado de Alalu a vida em Nibiru entrou em crise, correndo risco de extinção. Quase semelhante ao que acontece agora na Terra, a destruição da atmosfera do planeta alcançou tamanha dimensão que vários sistemas orgânicos entraram em colapso.
Um escudo de ouro! – essa foi a idwia genial.
Cientistas nibiruanos descobriram que era possível salvar o planeta criando um escudo de partículas de ouro que protegesse a atmosfera. Imediatamente, o rei Alalu enviou esquadrões de exploradores ao espaço em busca do precioso metal.
Durante o reinado de Alalu, o príncipe Anu amadurecia e tramava secretamente a ascensão ao trono. Passados nove shars, ou anos nibiruanos, Anu havia juntado força suficiente para desafiar a coroa. Estava pronto, empenhado em lutar não só pelo poder de Nibiru, mas também pela justiça, restaurando ao trono seu legítimo herdeiro, ele mesmo.
Anu declarou guerra a Alalu. Venceu as principais batalhas e assumiu o trono. Alalu fugiu do planeta em sua espaçonave, escoltado por sua extensa guarda pessoal.
Era justamente uma época em que Nibiru se aproximava do Sol e dos demais planetas do sistema. Alalu viu a Terra ainda inexplorada e sentiu-se atraído por sua beleza azul. Decidiu descer e buscar um refúgio aqui em nosso planeta.
Quando chegou à Terra, na região hoje chamada de Golfo Pérsico, Alalu fez uma importante descoberta – havia ouro nas águas do mar.
– Este planeta deve ter muito ouro. A sorte me favorece! – ele pensou, preocupado com a salvação de seu planeta natal onde vivia sua extensa família: a consorte, as concubinas, os amantes masculinos, seus eunucos, filhos, netos, bisnetos, tataranetos… O ouro da Terra poderia ajudar a salvá-los. Também devia sonhar com o retorno ao lar e com a mordomia a que fora acostumado como monarca supremo. A comunicação da descoberta do ouro podia lhe render créditos junto à realeza e facilitar seu regresso.
Foi o que aconteceu. Alalu se comunicou com Nibiru e informou sua descoberta. Agradecido, Anu permitiu que ele regressasse pra junto de sua família.
Antigamente, o planeta Nibiru era bem conhecido pela humanidade. Depois virou mito. Foi esquecido porque durante mais de três milênios esteve fora do alcance de captação dos instrumentos astronômicos em uso. Estava muito distante.
Sem demonstrar nenhuma impaciência com todas as dúvidas que enrugavam a testa de Lúcio, Dália fez uma solicitação.
– Dê-me um crédito. Procure ouvir com atenção, tome nota, depois cheque e duvide o quanto quiser.
– Desculpe-me, Dália, não tive a intenção de…
– Eu já sabia desse seu jeito desconfiado. Por isso o escolhi. Se conseguir convencer você, poderemos convencer muitas outras pessoas.
– Quer dizer que essa história é real, que não é uma invenção sua?
– Você vai acreditar nela no transcorrer da narrativa. Prosseguimos?
A órbita que Nibiru percorre tem a forma de uma longa elipse. Todos os demais planetas estão ao redor do Sol num dos cantos, que é um dos focos da elipse. Isso faz com que Nibiru se aproxime e se afaste do resto do sistema a cada shar, ou seja, a cada 3.600 anos terrestres.
Sempre que Nibiru retorna, acercando-se da Terra, traz desgraça ou progresso. Quando passa muito perto, provoca profundas modificações no clima, inundações e glaciações. Quando passa numa posição mais favorável, o rei Anu desce à Terra, o Panteão dos Doze se reúne, delibera e promove avanços. A história da Terra está marcada por esses ciclos de 3.600 anos.
Cinco mil anos depois de Alalu descobrir ouro no Golfo Pérsico foi que o grande Ea chegou.
O príncipe Ea, primogênito do soberano Anu, é o principal personagem da História Oculta. Veio para a Terra trazendo consigo uma equipe de quatrocentos trabalhadores. Antes de decidir onde descer realizou diversos vôos sobre o planeta, sondando e analisando o solo. Sobrevoou o mar Arábico e quando alcançou os limites dos pântanos do Oriente Médio resolveu aterrissar.
Ea escreveu um longo diário intitulado “Ea e a Ordem da Terra”, onde narra sua chegada em nosso planeta. Ele diz:
“Quando me aproximei da Terra,
havia muita inundação.
Quando me aproximei de suas várzeas verdejantes,
ordenei que fossem empilhados montes de terra.
Construímos minha casa num lugar puro.
Minha casa… sua sombra se estende
sobre o pântano das cobras…”
Seu texto continua descrevendo os trabalhos de contenção de água nos pântanos, o levantamento topográfico dos manguezais, a abertura de canais para drenagem, a construção de diques e de estruturas de tijolos com argila local. Também descreve como uniu os rios Tigre e Eufrates por canais e construiu sua Casa na Água com ancoradouro próprio.
O objetivo da missão era extrair ouro das águas do Golfo Pérsico com técnicas de laboratório e mandá-lo para Nibiru.
– Porque só depois de 5 mil anos é que vieram para a Terra? Como esse Ea, filho do Anu, ainda vivia depois de 5 mil anos? – ele argumentou incrédulo.
– Vivia não: o príncipe Ea ainda vive.
Lúcio sentiu um baque na testa, uma queda vertiginosa na credibilidade da história. “Um príncipe vivo depois de 450 mil anos? Essa mulher está indo longe demais! Está me fazendo de besta ou essa história é mais uma ficção científica de quinta categoria” – pensou. Respirou fundo, tentando esconder a irritação. Ela acompanhava seu movimento interior pacientemente, e prosseguiu.
A vida na Terra é programada pela duração de sua órbita ao redor do Sol – um ano. O relógio biológico humano está engrenado a um determinado número de voltas ou anos. O mesmo se passa em Nibiru, com a diferença que um ano de vida em Nibiru corresponde a 3.600 anos de vida terrestre. Por isso, os homens pensavam que os nibiruanos eram imortais.
– Os homens?
Para as galinhas, os homens parecem imortais, pois nascem e morrem centenas de gerações delas e os granjeiros estão sempre lá, praticamente imutáveis. O mesmo aconteceu entre os homens e os nibiruanos. Muitas gerações humanas se sucediam diante dos mesmos nibiruanos, que nunca envelheciam.
Lúcio se acalmou, parecendo conformado com a lógica da explicação. Ela seguiu:
Na região entre os rios Tigre e Eufrates chamada de Mesopotâmia, Ea criou muitos povoados e fortalezas – Eridu, Badtibira, Laraak, Shuruppak, Larsa, Lagash, Sippar, Éden e a famosa Nippur, onde foi instalado o primeiro centro de controle aeroespacial da missão.
Nippur, criada há mais de 400 mil anos, existe até hoje no Iraque, tendo sido reconstruída inúmeras vezes.
Depois de alguns milênios de exploração, as reservas de ouro do mar se esgotaram e, conseqüentemente, o envio do metal diminuiu. No entanto, o precioso metal continuava sendo de grande necessidade para Nibiru. Por isso, o todo poderoso Anu resolveu investigar a colônia pessoalmente. Desceu ao solo pela primeira vez em aproximadamente 416 mil a.C. Sua comitiva real era composta de muitos membros da nobreza, entre as quais o ilustre Enlil, príncipe herdeiro de Nibiru.
– Se Ea era primogênito, devia ser ele o herdeiro, não? – interveio Lúcio novamente.
O casamento entre irmãos inteiros é proibido em Nibiru, mas as relações sexuais entre eles e a procriação são permitidas. O ideal, o mais desejável é que um homem se case com uma meia-irmã por parte de pai, para manter a linha de sangue. Tal regra de sucessão foi copiada depois e pode ser encontrada na história das cortes humanas da Antiguidade, desde o Egito até o império Inca. Eles possuíam algum tipo de conhecimento que a ciência moderna ainda não descobriu.
O príncipe Ea era o primogênito de Anu, o filho mais velho, mas a mãe dele era irmã inteira do rei, o que lhe tirava a prioridade. Enlil era o sucessor ao trono de Nibiru, o primeiro filho varão do rei com uma meia-irmã, portando privilegiado. Essa regra de sucessão hereditária teve um papel preponderante em quase todas as guerras que foram travadas posteriormente na Terra.
Se ficasse em Nibiru, Enlil poderia destronar o pai. Por isso, Anu o trouxe consigo.
Aportaram primeiro na estação espacial que orbitava ao redor da Terra pra descansar da viagem e preparar-se para as tensões que provocaria a descida de Enlil ao solo, área sob o poder de Ea, onde já era chamado de Enki, que significa Senhor da Terra. A interação das duas forças representadas por esses dois irmãos seria de fundamental importância para o futuro da humanidade.
– Da humanidade?
– Calma. Ainda estamos no começo da historia. Chegaremos na humanidade.
O objetivo oficial da primeira visita de Anu era conhecer a colônia pessoalmente e tentar solucionar a questão do ouro. O objetivo subjacente era afastar o filho Enlil de Nibiru. Em sua primeira visita Anu seguiu a regra básica do poder – dividir para governar.
Com a descida de Anu à Terra trazendo o irmão rival, Ea ameaçou abandonar a missão e regressar a Nibiru. Isso certamente não estava nos planos do monarca, pois Ea também poderia tomar seu trono em Nibiru com um golpe de Estado.
Por outro lado, Ea já tinha encontrado uma possível solução para a questão do ouro. Ele conhecia bem este planeta e descobriu que no continente africano havia muito ouro, mas que estava sob o solo, o que demandaria um trabalho mais pesado – a mineração tradicional pelo método da escavação.
Foi aí que Anu encontrou uma solução satisfatória para si – dividir o poder entre os dois filhos, longe de Nibiru. Mandou descerem mais operários e deu a Ea o controle sobre o continente africano e a tarefa de explorar o ouro subterrâneo.
Enlil, como legítimo herdeiro, ficou com o comando geral da missão Terra, confortavelmente instalado em Nippur. Tal divisão foi sábia, uma vez que Enlil era um político e militar brilhante, mas que nada entendia de explorações. Ea era um engenheiro exímio e um cientista competente.
Ea iniciou o trabalho de exploração de ouro no sudeste da África, local que foi batizado de Abzu.
Gradualmente, Enlil ampliou seu prestígio e poder sobre a Terra. Estabeleceu uma rota que existiu por longo período. Os minérios vinham de navio da África até a Mesopotâmia, onde eram refinados. Aeronaves de carga transportavam o ouro para as estações orbitais, que de lá era levado pelas espaçonaves que chegavam de Nibiru periodicamente.
Dália interrompeu a narração e comentou:
– Antes de continuar, há uma coisa que você precisa entender agora.
Imediatamente Lúcio centrou-se, ouvidos bem abertos, alerta e focado nas palavras dela.
– Os humanos chamavam os nibiruanos de anunnaki ou nefilim, que literalmente significa “aqueles que dos Céus vieram para a Terra”.
– Já vi esse nome, Nefilim, na Bíblia – Lúcio comentou.
– Exatamente. Você tem um exemplar aqui em sua casa?
– Sim, tenho. Às vezes consulto alguns trechos pra algum trabalho.
Ela abriu a Bíblia no livro de Gênesis e apontou: – Veja aqui. Este trecho diz o seguinte:
“Quando os homens
começaram a ser numerosos na face da terra,
e lhes nasceram filhas, os filhos de Deus viram
que as filhas dos homens eram belas
e tomaram como mulheres todas as que lhes agradaram.
Ora, naquele tempo e também depois,
quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens
e estas lhes davam filhos,
os nefilim habitavam sobre a terra.
Estes homens famosos
foram os poderosos dos tempos antigos.”
Gênesis, capítulo 6, versículos 1 a 4.
– Coisa esquisita para estar na Bíblia. Os filhos de Deus copulando com as filhas dos homens? – Lúcio comentou.
– A Bíblia usa os termos nefilim e elohim, palavras plurais com o mesmo sentido – os que vieram dos céus. A palavra correspondente no idioma grego é deuses – ela disse, enfatizando a última palavra.
– Deuses? Está me dizendo que os deuses gregos que viviam no monte Olimpo eram pessoas reais, eram os nibiruanos?
– Exatamente.
Dália fez uma pausa para que as palavras se encaixassem na mente dele e depois continuou: – O livro Gênesis da Bíblia é uma colagem deturpada de partes do Épico da Criação, obra documental sumeriana escrita há pelo menos 8 mil anos. Se observarmos com atenção perceberemos que a Bíblia mantém a palavra elohim e nefilim no livro Gênesis, mas ao longo da narrativa esses termos vão sendo substituídos pela palavra Deus Javé, no singular. Foi um “erro” de tradução do Épico da Criação, engenhosamente colocado no Gênesis bíblico por Moisés e seus descendentes. Por isso, todos os feitos dos anunnaki são creditados a uma entidade singular chamada Deus Javé ou Iahweh. Esse “pequeno erro” cometido inventou o deus único hoje venerado pela humanidade.
– Pode explicar melhor?
– Agora devo partir.
– Já vai? Pra onde? Vai a pé?
– Não se preocupe comigo, meu querido. Apenas não me siga. Volto amanhã.
– Mas…
– Pense nisso: o Deus que se venera hoje é apenas um ser alienígena.
TERCEIRO CAPÍTULO
Suou durante um sono envolto em pesadelos labirínticos, onde em cada curva se encontrava com a mãe, ainda jovem, querendo dizer-lhe algo, mas numa língua estranha, incompreensível.
Lúcio despertou ansioso, respiração curta. Por toda a manhã não conseguiu trabalhar nem permanecer quieto. Andava de um lado pro outro, ruminando impressões dos pesadelos com a mãe e da história que questionava a existência de um Deus onipotente.
Depois do almoço já estava exausto.
Sempre que precisava se reconfortar ia ao banho turco, lugar que frequentava desde criança, quando seu avô o levava consigo. Envolto pelo vapor quente, o cheiro de eucalipto e nu, ele se sentia no útero materno – seguro e confortável.
O lugar, reformado e modernizado inúmeras vezes ao longo dos anos, recriava com sofisticação o ambiente das antigas termas romanas no tempo em que ricos e pobres se encontravam nus. O que em Roma era uma coisa pública e aberta, nos dias de hoje tornara-se um refúgio para poucos.
Uma piscina redonda centralizava a área de descanso, com espreguiçadeiras, mesinhas e um bar. Homens moviam-se nus ou com toalhas firmadas na cintura, conversavam aos pares ou dormiam. Alguns caçavam companhia, mas Lúcio não fora lá pra isso. Depois de todas as surpresas dos últimos dias ele só queria relaxar o corpo e organizar suas embaralhadas idéias.
Um grande vitral ao fundo deixava o sol da tarde entrar e alvejar a piscina com raios coloridos. A luz refletida na água atingia a visão de Lúcio, impedindo-o de enxergar as pessoas com precisão. Teve a impressão de ver um rapaz com cabelos azulados e um corpo atlético saindo da piscina, vindo em sua direção.
“Outra alucinação” – pensou, quando percebeu que o vulto era apenas um banhista comum, um tipo rude que se aproximava.
O homem estava nu, mas de passagem apanhou uma toalha e cobriu-se respeitosamente antes de sentar-se à sua frente.
– Com licença – foi dizendo. – Desculpe interromper seu descanso. Sou o major Cruz, da Interpol. Prazer em conhecê-lo, Lúcio.
– Sabe meu nome? Em que posso ajudá-lo?
– Há algum tempo venho esperando uma oportunidade de falar com você sem criar constrangimentos. Aqui me pareceu um bom lugar pra esse encontro, para preservar sua imagem e sua integridade.
– Minha integridade?
– Isso mesmo, preservar sua integridade. Sinto informá-lo que pode estar correndo perigo.
– Eu? E por quê? Fiz alguma coisa que não devia?
– Por enquanto, acho que não.
Era a segunda pessoa que o alertava de perigo nos últimos dias. Passou-lhe pela cabeça que poderia estar sendo vítima de um complô, algum golpe para arrancar-lhe dinheiro. Talvez Dália e aquele militar fossem cúmplices…
– O senhor está me deixando nervoso. Posso saber por que estou correndo perigo?
O policial olhou ao redor, certificando-se de que não havia ninguém próximo, e baixou o tom de voz.
– Temos informações de que nos últimos dias você tem sido abordado por uma psicopata perigosa. É uma criminosa paranormal que usa técnicas modernas de hipnose para envolver as pessoas em ações transgressoras, ilegais. Apresenta-se com os mais variados nomes e disfarces. É muito bela e envolvente. Inventa atividades aparentemente inofensivas.
Durante a pausa que o major fez, Lúcio se manteve imóvel, rígido, defensivo. Era difícil se desarmar diante de uma figura tão rude e policialesca como aquela que fazia perguntas olhando fria e fixamente em seus olhos. Pelo menos parecia óbvio que ele e Dália não eram cúmplices.
– Lúcio, você sabe de quem estou falando?
– Acho que sim – respondeu desolado, vendo desmoronar suas fantasias amorosas e os mistérios que Dália evocava.
– Além de possuir estranhos poderes pessoais, essa mulher pertence a uma quadrilha terrorista internacional muito bem equipada e eficiente. Não sei o que ela quer com você, mas seja o que for não pode ser boa coisa.
– Ela me pediu apenas que escrevesse uma história que queria publicar.
– Uma história? Nada mais?
– Nada mais.
– E o senhor não estranhou?
– Não. Sou escritor. Ela me prometeu uma boa remuneração.
– Assinou algum contrato? Ela fez algum adiantamento?
Lúcio permaneceu calado. Uma dor em seu peito sinalizava que sua capacidade de decepcionar-se chegava ao limite. O policial insinuava que ele estaria levando um golpe, que ela não pagaria…
– Que história é essa que ela quer que escreva? – insistiu o major.
– Uma… bobagem sobre alienígenas – respondeu, ainda tentando protegê-la e menosprezar as acusações que ouvia.
– E o senhor a levou a sério?
– Claro que não – ele mentiu. – O senhor há de convir que ela não é coisa de se jogar fora. Uma mulher gostosa e bonita aparece em minha casa… Pensei em levar a coisa em banho-maria até…
– Está me dizendo que seu interesse é puramente sexual?
– Que mais poderia ser?
– Não conte com isso. Ela pode até lhe dar algum prazer rápido. Quando tiver conseguido o que quer, você pode ser assassinado.
Lúcio não conseguiu evitar que suas pernas tremessem enquanto o policial prosseguia o interrogatório.
– Ela já tocou em seu corpo?
– Sim, quando a carreguei pro banheiro e depois tocou meu rosto de leve antes de dormir.
– Dormiu em sua casa?!
– Mas não tivemos nenhum contato íntimo.
– Ficou muito tempo olhando pra ela?
– Algumas horas.
– Hum! Bebeu alguma coisa que ela lhe deu?
– Não. Ou melhor, apenas um copo de água.
O major franziu a testa antes de lançar seu comentário como se fosse uma sentença.
– Em linguagem popular eu diria que o senhor está enfeitiçado.
Enfeitiçado era realmente como Lúcio se sentia. Lembrou-se que fora logo depois do primeiro gole de água que a multidão do restaurante Manga Rosa pareceu afastar-se num fantástico zoom.
– Precisamos que nos ajude a pegá-la pro seu próprio bem – retomou o policial.
– E o que posso fazer? – perguntou desanimado, pequeno.
– Espere um instante, por favor, volto já – disse o major levantando-se, aparentemente indo buscar alguma coisa nos vestiários. Lúcio olhou ao redor e sentiu que o ambiente caloroso do banho turco ia esfriando na medida em que seus pensamentos eram tomados por uma onda negativa de preocupações.
– Entrei numa fria! – pensou quase em voz alta.
O major voltou e entregou-lhe um pequeno aparelho, um tipo de celular bem pequeno.
– Fique com esse aparelho. Basta pressionar essa tecla vermelha que será localizado. Faça isso quando ela aparecer novamente e nós o protegeremos.
– Como posso saber se o que está me dizendo é verdade?
– Aqui estão meus documentos. Pode verificar.
Diante do policial, Lúcio olhava os documentos sem nada ver, pois tinha perdido completamente a capacidade de concentração.
– Major, o senhor tem certeza de que não será perigoso? Se essa mulher é o que o diz, se eu apertar esse botão ela pode perceber minhas intenções e…
– Estaremos ao seu lado antes mesmo que ela possa dominá-lo. Confie na eficiência da Interpol. Agora se me der licença, tenho que ir. Não se esqueça: quando ela aparecer, ou quando o senhor precisar falar comigo, aperte a tecla vermelha. E cuidado com a hipnose! Ela pode fazê-lo enxergar, pensar e sentir coisas absurdas.
O major era muito convincente e intimidador. Seu porte sólido, os ombros largos e o pescoço taurino transmitiam estabilidade e segurança. O rosto inflexível emanava poder e autoridade. Não foi difícil acreditar nele.
– Aquela bruxa me paga! – esbravejou.
CAPITULO QUATRO
O tempo se arrastava lento porque ela não entrava em contato. No dia anterior Dália não aparecera conforme prometido. – Será que ela veio quando eu estava no banho turco? Será que ela sabe que o major Cruz anda atrás dela? – pensava Lúcio.
Apesar do medo provocado pelo alerta do policial, encontrá-la outra vez era o que ele mais queria. Para ter a chance de desmascará-la, de vingar-se por tê-lo enfeitiçado e largado num estado de paixão dolorida? Não. Só queria estar outra vez diante daquela presença encantadora que cativara sua mente e seus hormônios.
Ele sempre fora excessivamente rápido em suas ações e decisões. Esperar era o verbo mais difícil do seu vocabulário. Para escapar da ânsia tentou entregar-se à meditação, processo ao qual se dedicava havia anos, mas desta vez não conseguiu colocar os pensamentos de lado. Imagens e frases de Dália movimentavam sua memória e roubavam sua atenção com extrema voracidade.
Tentou trabalhar no computador, mas não produziu nada aproveitável. Anoitecia quando ouviu um ruído e – nova surpresa – vinda da cozinha com dois copos de vinho nas mãos, Dália entrou na sala.
– Saudades de mim, querido?
A saudação já o desmontou.
– Trouxe uma garrafa de vinho chileno. Vamos beber? – ela propôs.
Pego de surpresa, Lúcio dizia a si mesmo que uma distância emocional devia ser mantida, além de não se deixar afetar pelos laços carinhosos que os olhos dela atiravam. Mas como? Estava indefeso, incapaz de se defender daquela onda de sexualidade que exalava da mulher e que fazia seus quadris dançarem por dentro.
– Brindemos ao nosso reencontro! – ela propôs novamente.
Foram momentos de grande hesitação. E agora? Seria aquele vinho o tal veneno, a feitiçaria à qual o major havia se referido?
– Hoje não… É que… Não estou com sede – ele respondeu, virando a cara de lado, tentando esconder os pensamentos, escapar da situação.
– Vejo uma regressão em sua confiança. Que houve, Lúcio?
Ele não viu outra saída senão falar sobre o que estava lhe incomodando.
– Um policial da Interpol me procurou. Acusou você de… Já fui avisado sobre seus poderes. Estou muito preocupado, para não dizer com raiva de ter sido enganado.
– Enganado?
– Além disso, estou com medo de você – confessou.
Ela bebeu meio copo de vinho e sentou-se. Retirou um maço de cigarros do bolso e acendeu um. Soltou volumosas baforadas no ar e ficou admirando o movimento da fumaça se deslocando pela janela aberta.
– Acha que é verdade o que diz a propaganda oficial sobre o cigarro? – ela perguntou como quem puxa conversa fiada.
Era a última coisa que Lúcio imaginaria que ela fosse dizer.
– Não, não acredito. Aliás, não acredito em nenhuma propaganda – ele respondeu com convicção.
– A raça humana usa o tabaco há muitos milênios. Agora, de uns vinte anos pra cá, os americanos “descobriram” que o cigarro é um grande perigo pra saúde da humanidade. Quando os médicos não conseguem achar uma causa pra alguma doença botam a culpa no cigarro. Parece piada! Um bilhão e meio de pessoas fumam atualmente no planeta. Seriam todas burras? Einstein fumava, sabia?… Já pensou quantos milhões de traficantes serão necessários para abastecer o planeta caso o cigarro seja mesmo proibido? Antes de proibirem as drogas não havia o famigerado narcotráfico e a polícia não tinha desculpa pra aumentar seus orçamentos e matar favelados. A humanidade fuma desde que o homem é homem, mas ainda não tem consciência do por quê. A fumaça é um alimento gasoso, emocional, tão importante quanto o material. Aceita um? – estendeu-lhe o maço.
Ignorando os avisos do major Cruz de que ela poderia envenená-lo com qualquer coisa, ele aceitou. Como também era um fumante, as palavras dela o aliviaram o suficiente para que baixasse a guarda.
– Então, Lúcio, o seu problema é decidir se confia em mim ou num agente policial? Desconfiança é entrave, precisamos resolver isso. Agora me diga: o que é a Interpol?
O que ele disse a seguir, normalmente não diria. Era um jornalista bem informado, conhecedor das entrelinhas das principais notícias publicadas no mundo inteiro. Sabia que a liberdade de imprensa é uma quimera e que para manter seu emprego não podia atacar os poderosos diretamente. Entretanto, uma pressão dentro da cabeça o forçava a se expor. Disparou:
– Sei que a Interpol, assim como a CIA, a Scotland Yard, a KGB, o Mossad, o FBI e todas as outras polícias governamentais são entidades corruptas, a serviço dos donos do mundo. Essas entidades estão por trás de assassinatos comuns, mortes de chefes de Estado e ataques terroristas planejados para manter a população com medo e justificar maiores investimentos na indústria militar. Essas polícias produzem atentados terroristas sempre que precisam jogar culpa em países que têm petróleo ou que estejam numa região estratégica. Assim, obtêm a desculpa pra invadi-los e roubá-los. Os generais da indústria bélica, aliados aos doutores da indústria farmacêutica, elegem um presidente fantoche, sócio deles, que lhes garante que haverá guerra e que suas armas serão vendidas, assim como seus remédios, mesmo que pra isso tenham que criar novas doenças. Quem paga a conta são os mais fracos, os pobres afegãos, os africanos, o povo iraquiano, os libaneses, os palestinos, só para citar algumas regiões.
– Está vendo? Você não tem nenhum motivo para acreditar neles.
– O tal major me disse que perseguem uma criminosa. Que tipo de crimes você costuma cometer? – ele se atreveu a perguntar.
Ela nem pensou para responder.
– Confesso que já matei pessoas.
Lúcio sentiu um aperto nas tripas, mas buscou não demonstrar.
– E daí? – ela seguiu. – Não sou fã dos Dez Mandamentos. Não vejo diferença nenhuma entre matar uma pessoa, uma vaca, uma galinha ou um tomate, como as pessoas fazem diariamente. O problema é que se valoriza a vida humana excessivamente. Atualmente a população do mundo cresce vertiginosamente. Valioso é o que é raro, e não uma praga como a humanidade é pras outras espécies. E depois, se eu quisesse lhe fazer mal já estaria morto.
Ao invés de provocar pânico, a confissão dela o fez sentir-se cúmplice.
– Também eu nunca fui fã dos mandamentos de Moisés – ele revelou. – “Amar a Deus sobre todas as coisas” me soa como uma frase prepotente, egocêntrica, vaidosa, enfim, um primeiro mandamento digno de um reizinho medieval. Os outros mandamentos… Baboseira de baixo nível.
– Que bom que também pensa assim.
– Devo confessar que minha admiração por você cresce a cada momento, Dália.
Um bom tempo ela ficou olhando o chão, talvez incerta se devia deixar a conversa seguir naquele rumo ou…
Então ela propôs: – É lua nova e o céu estrelado. Vamos continuar nossa história na varanda?
HISTÓRIA OCULTA 2
Os deuses venerados por todas as antigas civilizações eram viajantes espaciais com um soberbo conhecimento, uma avançada tecnologia e o desejo de encontrar ouro.
Os deuses-operários, ou anunnaki inferiores, realizaram uma pesada tarefa nas minas da África por dezenas de milênios. Eram extremamente resignados, pois somente depois de 150 mil anos foi que soltaram seu primeiro grito – uma greve.
Realizaram a primeira greve terrestre por volta do ano 300 mil a.C., incitados pelo príncipe Ea. Não só paralisaram o trabalho nas minas de Abzu, como também se deslocaram para o Oriente Médio e se lançaram contra a guarda particular de Enlil em Nippur. Conseguiram cercar sua casa, prontos a arriscar suas vidas em troca de alcançar seus objetivos de classe.
Os textos antigos narram a cena assim:
Era noite e Enlil foi despertado por seu chanceler.
“Meu senhor, a casa está cercada,
a luta veio direto até tuas portas.”
A primeira reação de Enlil foi de contra-atacar com suas armas letais, mas deteve-se a tempo de ouvir a sugestão do chanceler.
“Senhor Enlil, convoque os doze altíssimos.”
Assim ele fez. A assembleia dos doze reuniu-se na estação espacial. Perante seus pares, Enlil mostrou-se colérico, tomando a questão como pessoal, e chegando mesmo a chorar quando apresentou seu ultimato.
“Ou o chefe dos amotinados é executado,
ou eu abdico.”
Todos sabiam que o chefe dos amotinados era o príncipe Ea, mas os mineradores mantiveram-se unidos quando foram interrogados e assumiram a culpa coletivamente. Diante de tamanha lealdade do povo ao irmão rival, Enlil tentou abdicar, implorando a Anu:
“Leva o cargo, retoma o teu poder
e ascenderei aos Céus contigo.”
Muito mais experiente que Enlil na lida política e sabendo que a mão do filho Ea devia estar por detrás dos acontecimentos, Anu resolveu defender os mineradores.
Anu disse:
“De que os acusamos nós?
Seu trabalho era pesado,
sua angústia muita!
O lamento era pesado.
Nós podemos ouvir a queixa.”
A queixa era conhecida, porém o que pediam os mineradores era inédito.
“Que se encontre um lulu
para substituir os deuses em Abzu.”
– Foi então que resolveram escravizar o homem para trabalhar para os deuses, certo? – perguntou Lúcio, tentando adivinhar a seqüência da história.
Por um instante que pareceu eterno, Dália refletia sem responder. Lúcio podia sentir claramente que ela hesitava em dizer o que queria, duvidando da sua capacidade de entendimento ou querendo esconder alguma coisa. Por fim, ela falou.
– Sobre a origem da humanidade falaremos mais adiante.
Aproveitando a pausa que ela fazia examinando o céu, Lúcio media seu corpo de cima a baixo, de baixo pra cima, se extasiando com sua beleza. Tudo era tão perfeito que ele teve a impressão de que era ele mesmo quem a estava criando. Como se seu olhar fosse pintando os detalhes dela, a boca amoratada, os longos cílios… Não conseguia concentrar-se na História Oculta, embora lhe parecesse interessante e talvez verossímil. A beleza da mulher dominava sua atenção. Resolveu dar mais um passo em favor dela. Retirou do bolso o aparelho que o major lhe havia dado.
– O major Cruz me deu esse aparelho para chamá-lo quando você aparecesse.
– Por que não me disse logo que tinha esse objeto? Tenho que partir – ela disse, aparentemente perturbada.
– Tão depressa?
– Esse grip pode denunciar minha presença. Até breve.
Saiu às pressas, mas antes lhe deu um beijo na testa. Lúcio fechou os olhos e na tela escura de suas retinas explodiram estéticas luzes, como fogos de artifício. Quando ergueu as pálpebras ela tinha desaparecido. Correu pra fora. O céu cobrira-se de nuvens deixando a noite muito escura. Mesmo assim, ele conseguiu vê-la caminhando em direção à floresta.
– Que louca! Entrando na mata nessa escuridão!
Sem olhar para trás, ela penetrou numa trilha da floresta. Lúcio viu ali uma oportunidade para desvendar o mistério dos seus aparecimentos e sumiços repentinos.
A casa de Lúcio ficava em meio a uma reserva florestal. Aos fundos da propriedade, depois da reserva, havia outra estrada e um pequeno povoado. A comunicação era possível através de uma estreita trilha na mata, justamente por onde Dália entrou.
Ela seguia adiante e ele uns cinquenta metros atrás, cauteloso, silencioso. Durante um bom tempo caminharam pela longa e sinuosa trilha.
Em nenhum momento ela olhou para trás, o que deu a ele mais confiança para encurtar a distância. Deixando a trilha, Dália adentrou o povoado, apressada. Lúcio teve que correr para conseguir chegar próximo o bastante a tempo de vê-la entrar numa casa pequena.
Aproximou-se, rodeou a casa e nada viu. Havia apenas uma fraca luz escapando pela fresta de uma janela fechada. Lá dentro, silêncio.
Sem ousar bater na porta, ele teve que refazer a pé o longo caminho através da mata. Era a primeira vez que se encontrava sozinho no meio de uma floresta durante a noite. A cada passo hesitava, temeroso. Seus instintos que poderiam guiá-lo facilmente naquele espaço tão natural se bloqueavam de medo.
Perdeu a trilha e viu-se enroscado por ramagens até tropeçar e cair. Ficou um tempo deitado de costas olhando o céu escuro. Então, algo maravilhoso aconteceu. Os ventos levaram as nuvens e o céu de estrelas prateou a copa das árvores, cujas silhuetas criavam delicados desenhos no céu. Então olhou ao redor e viu uma camada de luz delineando cada forma, folha, haste, fruto ou flor. No chão, exércitos de insetos labutando…
Ergueu-se maravilhado e retomou a trilha com facilidade, caminhando macio como se pisasse num tapete valioso. Quando chegou a casa, para testar a veracidade do que o major dissera sobre venenos, bebeu o vinho que Dália antes lhe ofertara. Nada aconteceu além da euforia natural que a bebida provoca.
CAPÍTULO 5
Logo de manhã, Dália telefonou:
– Lúcio, querido. Tive que fugir de sua casa por causa daquele aparelho. Ele serve pra chamar o policial, mas também serve para monitorar os nossos movimentos.
– Os meus movimentos?
– Ainda está aí com você?
– Está.
– Seguinte: Leve esse grip pra algum lugar longe de sua casa e deixe-o lá. Pensarão que está fora de casa enquanto estivermos nos encontrando. Pode ser?
– Farei isso agora mesmo.
– Outra coisa. Você disse que o nome do major era Cruz?
– Foi com esse nome que ele se apresentou.
– Hum! Major Cruz… Sabia que o símbolo de Nibiru é a cruz?
– Não, não sabia. Nibiru tem alguma coisa a ver com o cristianismo?
– Tem tudo a ver. Se eu puder continuar com a história chegaremos lá. Então nos vemos mais tarde?
– Combinado!
Lúcio levou o grip até a Estação Central do metrô. Estacionou o carro e subiu a rampa que dá acesso ao núcleo do complexo. Estava lotado de gente. Centenas de cabeças, ombros, barrigas e quadris. Todos estavam com pressa e não havia espaço para passos largos.
Nunca antes ele tivera problemas em adentrar uma multidão. Até gostava, pois se sentia confortável, aninhado no calor humano. Naquela tarde, porém, foi doloroso. Era como se cada um que nele esbarrasse ou passasse muito perto arrancasse um pedaço de seu ser. Foi se dando conta de que seu corpo, embora não pudesse ver, era bem mais largo do que ele pensava.
Abordou o balcão de bagagens, alugou um armário no depósito e deixou o grip lá. Teve de enfrentar de novo a multidão pra voltar ao estacionamento. Conforme avançava, sentia suas forças se esvaírem. Penosamente conseguiu chegar de volta ao carro. Ficou sentado diante do volante um tempão, parado, só respirando e buscando entender o que estava acontecendo. Será que a presença de Dália mexeu com meu metabolismo geral? – pensou.
Na volta, guiando em alta velocidade, deu-se conta de que estava participando de uma trama policial real e sentiu uma descarga de adrenalina. Finalmente realizava seus sonhos juvenis de ser um detetive. Chegou em casa refeito, excitado e logo notou que alguém ocupava a rede da varanda. Dália se balançava, cantarolando uma canção numa língua desconhecida.
Instantaneamente, ele deixou de lado todas as questões que invadiam sua mente, tais como: Onde mora? É casada? Tem família?… Questões que se respondidas dariam a ela uma existência real, palpável. Ele nada sabia daquela mulher. E importava saber? Naquela noite, deitada na rede, Dália era a coisa mais real que ele podia conceber.
– Podemos trabalhar aqui fora? A noite está tão linda – ela sugeriu.
Ele foi buscar o gravador e ela estirou o corpo de frente pra lua minguante. Seu belo perfil refletia um brilho metálico, como uma estátua de ouro branco.
– Hoje nada de conversa fiada. Temos que adiantar nossa história – ela disse, mostrando graciosamente a ponta dos dentes caninos. Em seguida retirou do bolso um envelope recheado de dinheiro e lhe entregou.
– Aqui está o pagamento adiantado por seu trabalho.
A suspeita que o major havia lançado de que ela daria um calote caía assim por terra. Ele ficou mais feliz por isso do que propriamente pelo dinheiro.
– Mas é muito – comentou, dando uma olhada no maço de notas.
– Você merece. Onde paramos nosso trabalho?
– Nos lulus.
HISTÓRIA OCULTA 3
Depois das dramáticas lamentações de Enlil pelo ataque dos mineiros à sua casa, o príncipe Ea informou ao Conselho dos Doze que na Terra não havia os tais lulus, mas que ele poderia criá-los.
Na assembleia Ea disse:
“Enquanto está presente a deusa do nascimento”,
que ela crie um Lulu Amelu.
Que ele suporte o jugo atribuído por Enlil.
Que sofra a fadiga dos deuses!”
A “deusa do nascimento” a quem Ea se referia era sua irmã, a cientista e médica parteira Sud, princesa membro do Panteão. Ela aceitou a missão com a condição de que a experiência fosse realizada em Abzu com a presença de Ea. Ela disse:
“Não poderei fazê-lo sem a ajuda de Ea,
com quem repousa a capacidade.”
A sugestão foi aceita por unanimidade no Panteão.
Ea havia descoberto na África um tipo de Homo erectus, o mais evoluído de todos os animais terrestres daquela época. Ele sabia que aquela espécie podia ser usada como base para a criação de lulus amelus – trabalhadores primitivos. Experimentaram o cruzamento de machos anunnaki com fêmeas Homo erectus sem sucesso.
– Será necessário apelar para a manipulação genética! – disse Ea a seus pares.
– Que assim se faça! – sentenciou o Conselho.
Criar um trabalhador primitivo era em si uma façanha extraordinária, porém Ea queria mais. Não desejava apenas criar um fantoche manipulável. Queria que o novo animal tivesse sua imagem e semelhança. Assim declarou:
“Façamos o homem à nossa imagem e semelhança.
Que se misture o barro
com a carne e o sangue de um deus.
Um deus que tenha teema.”
Outro erro bíblico de tradução aconteceu com a palavra barro, cujo original sumeriano significa óvulo. A Bíblia diz que Deus criou o homem do “barro”.
Ea queria também transferir para sua criatura algo mais básico e duradouro, o teema, um termo que grandes autoridades linguísticas traduziram por personalidade ou individualidade. Entretanto, o termo na linguagem anunnaki é mais específico. Significa literalmente “aquilo que abriga aquilo que liga a memória”.
Mais tarde, teema aparece na versão da língua acadiana como espírito.
A técnica utilizada foi a mesma que hoje é chamada “bebê de proveta”. Retiraram o óvulo de uma fêmea Homo erectus, fertilizaram com genes selecionados de Ea e introduziram o óvulo fecundado no ventre de sua esposa Ninki. Ea decidiu usar sua irmã-esposa para que a gestação completasse a impressão das qualidades anunnaki no novo ser. Ea disse:
“Ninki fixará sobre ele a imagem de um deus.
A essência de um deus lhe dará a semelhança.
Que o espírito numa consanguinidade seja unido.”
Nasceu então o primeiro lulu, a quem Ea chamou de Adama, um ser belo, à sua imagem (corpo) e semelhança (espírito).
O menino Adama era um sucesso e Ea o amava tanto que o adotou como filho legal. O Conselho aprovou a experiência e solicitou que se fizessem muitas duplicatas de Adama, e assim batizaram o novo ser: – Homem será seu nome!
Óvulos de Homo erectus eram picados, “purificados”, fertilizados pelos cromossomos de Adama, e introduzidos no ventre das enfermeiras, como eram chamadas as mulheres anunnaki que gestavam os novos seres. No entanto, passados os nove meses, os filhotes não nasciam e tinham que ser retirados por intervenção cirúrgica, a cesariana.
De Adama fizeram-se muitas duplicatas, masculinas e femininas, mas todos que nasciam eram produtos híbridos, sem a capacidade de reprodução. Serviam para a adoração aos deuses. Outro erro de tradução aconteceu com o tempo. Os homens não adoravam os deuses, trabalhavam para os deuses, e assim os anunnaki do Abzu puderam descansar.
Isso aconteceu por volta do ano 260 mil a.C. Catorze eras astrológicas atrás, uma Era de Áries propícia à iniciação.
Muitos lulus foram criados no Abzu. Embora tivessem uma semelhança física com os anunnaki, os lulus tinham o corpo mais peludo e os cabelos negros, daí serem chamados também de povo da cabeça preta.
Andavam nus e pastavam no chão. Bebiam água curvando-se sobre poças. Eram tratados como os outros animais e praticavam a sodomia entre si e com outros bichos. Mas podiam falar, compreender ordens e executar tarefas. Eram domesticáveis e tornavam-se obedientes, perfeitos para o trabalho para o qual eram necessitados.
Lúcio ouvira tudo em aparente silêncio. Por dentro, as tripas do cérebro davam nós.
Pelo menos em algum momento da vida todos nos perguntamos: de onde viemos? Pra onde vamos? Lúcio já se fizera essas perguntas muitas vezes. Sempre acabava dividido entre a teoria da evolução das espécies formulada por Darwin e as descrições místicas do criacionismo, entre a ideia de que o homem veio do macaco ou fora criado por Deus.
A teoria da evolução ainda não o convencera inteiramente por que faltava encontrar o elo perdido, uma espécie que seria a ligação entre o Homo erectus e o homem atual. Por outro lado, Lúcio considerava as narrações do Gênesis bíblico e de outras fontes místicas como alegorias e esperava um dia entender a realidade por detrás.
Seria o lulu o elo perdido? A junção das duas teorias? Seríamos filhos dos macacos e dos deuses também? – perguntava-se.
Dália percebeu que o assunto o tinha tocado fundo e que Lúcio precisava de tempo para digerir o novo paradigma que ela apresentava. Então sugeriu: – Que tal bebermos um chá agora?
Arrancado de sua confusão mental, ele se ergueu solícito.
– Vou colocar água para ferver.
Quando voltou da cozinha ela já não estava. Imediatamente Lúcio lembrou-se da casinha onde ela entrara na outra noite. – Por que quando estou com ela não consigo me lembrar de fazer perguntas práticas? Devia ter questionado sobre essas idas e vindas pelo meio da mata. Por que ela teria uma casinha justamente ali?… – dormiu pensando.
CAPÍTULO SEIS
No outono, a passarada riscava o céu de um lado ao outro namorando, agora que os filhotes já tinham abandonado os ninhos. Tal beleza não alcançava o olhar de Lúcio, opaco, focado na luta que se processava em seu interior. Questões se colidindo no fluxo dos pensamentos, pontadas na cabeça. A tensão interna se elevava dia após dia.
Já começava a entardecer e nada de ela aparecer. O tempo se arrastando lento demais. E se ela não voltasse? Desde que Dália surgira, o excesso de energia em que ele vivia tornava ainda mais difícil a tortura de qualquer espera. Resolveu agir. Foi à Estação Central e recuperou o grip que o policial lhe dera. Queria retomar o contato. Achou que talvez pudesse extrair algo do major, alguma informação que o ajudasse a entender Dália.
Voltou pra casa.
– Vamos ver se essa coisa funciona mesmo – pensou, ao tocar o botão vermelho do grip – Vamos ver quantas horas vai levar. Quero ver se a Interpol é tão eficiente quanto dizem.
Foi tomar uma ducha. Ao terminar, quando fechou a torneira do chuveiro e o ruído da água cessou, ouviu uma sequência de portas se abrindo e por último a do banheiro. Era o major.
– Onde ela está? Onde ela está? – perguntava aflito, esquadrinhando o espaço ao seu redor.
– Não há ninguém aqui, apertei a tecla sem querer. Derrubei esse aparelho e…
O major soltou todo o ar dos pulmões, relaxou e ficou apreciando o corpo nu a sua frente, ainda escorrendo água. Então Lúcio se deu conta da própria nudez e enrolou uma toalha na cintura. Duvidara da rapidez do major e fora pego de surpresa.
– Você está em boa forma – disse o major, descaradamente examinando o corpo de Lúcio, que não respondeu ao elogio e foi logo vestindo o roupão pra se cobrir.
– Foi até bom que a tecla tenha sido acionada sem querer. Estava mesmo querendo falar com você.
– Gostaria de beber alguma coisa, major?
– Uísque, se tiver. Puro.
– Pode me esperar na sala enquanto acabo de me vestir?
– Oh! Sim. Desculpe.
Embora não apreciasse bebidas alcoólicas, Lúcio tinha em casa algumas garrafas para possíveis visitas adeptas. Mesmo assim, serviu-se também pra mostrar confiança e descontrair o papo, pois sabia que partilhar o mesmo líquido, beber junto, estabelece uma ponte de contato emocional.
Quando a conversa já estava rolando com facilidade, Lúcio trouxe Dália à conversação. Contou que a tal “mulher demoníaca” não voltara a procurá-lo, informação que fez a expressão do major endurecer.
– Achei que a notícia iria agradá-lo, major.
– Vou ser franco. Gosto de ser sincero com as pessoas que respeito. Eu gosto de você e vou lhe dizer o que penso. É claro que eu quero protegê-lo do que for, mas você é a minha isca. Se ela não voltar aqui terei mais trabalho pra localizá-la.
Instalou-se uma empatia tão grande entre eles que Lúcio aceitou facilmente os motivos do major.
– Então sou uma isca. Ótimo! Espero que ela me morda!
– Apaixonou-se?
– Acho que sim.
Extremamente simpático e articulado, o major falava de qualquer assunto com interesse e conhecimento. Abertamente demonstrava estar gostando do aconchego do ambiente. Sorriso largo, derramava-se em comentários elogiosos que não pareciam falsos. Sua atitude mudou muito, como se fosse outra pessoa, muito diferente daquele policial do banho turco. Os ombros já não pareciam tão largos, o pescoço mais fino, o olhar mais manso…
Jogando conversa fora, eles foram se embebedando, garrafa após garrafa. O primeiro litro de uísque terminou.
– Vou buscar outra garrafa – disse Lúcio, levantando-se.
– Vou com você – ofereceu-se o major, que permanecia constantemente ligado na figura de Lúcio, mas já demonstrava algum desequilíbrio no andar.
Diante da pequena adega o major escorregou, e já ia caindo quando Lúcio o segurou. Quando ambos se ergueram, o major aproveitou a proximidade dos corpos e agarrou o anfitrião num abraço apertado. Peito contra peito, ventre contra ventre, pênis contra pênis.
Ao sentir que o major se excitava Lúcio se desvencilhou gentilmente, não por preconceito, mas por receio, pois não confiava em militares.
O major bebia uma dose atrás da outra e nem percebeu quando Lúcio parou de servir-se. Continuou brindando sozinho. Foram dois litros de uísque.
Lá pelas tantas, finalmente uma lágrima rolou na face do major, que passou a balbuciar coisas sem nexo. Entrou num estado emocional de enorme fragilidade e buscou abrigo no colo do anfitrião. Dormiu por alguns minutos, aninhado ao peito de Lúcio. De repente abriu os olhos assustados e tentou se levantar, porém seus joelhos se dobraram sobre o tapete.
Novamente Lúcio carregava alguém naquela semana. Levou o major para o quarto de hóspedes e o colocou na cama. Por algum tempo ficou admirando seu rosto, fato que, estranhamente, lhe provocou novas lembranças da infância.
Na redondeza, todas as crianças num raio de vários quarteirões brincavam juntas, nos quintais ou na rua, época em que a violência das pessoas era mais contida.
Naquela tarde, ele tinha sete anos. Com um grupo de meninos de sua idade, brincava de pega-pega entre as pereiras do quintal do vizinho quando começou a chover. Primeiro levaram uns pingos na cara, coisa que toda criança gosta. Mas quando a chuva engrossou, correram pra baixo do quarador de roupas – telhas de latão sustentadas a meio metro do chão com furinhos pra que a água escorra das roupas recém-lavadas.
Todos se apertavam para escapar do respingo dos furinhos por onde a chuva escorria. Foi então que um dos meninos exibiu seu pequeno pênis durinho erguendo-se no ar. Todos os outros do bando foram desafiados a fazer o mesmo. Pela primeira vez Lúcio via outros pintinhos duros, manipulados por inocentes mãozinhas. Não passou disso, mas foi sem dúvida uma iniciação homossexual. Desde então, a chuva passou a ter o poder de excitá-lo. O som da chuva no telhado despertava uma ânsia de aconchego, e seu corpo-memória recordava o quarador.
CAPÍTULO SETE
O galo cantou, rompendo a renda dos sonhos. Lúcio abriu os olhos e seu primeiro pensamento foi sobre o major – Problemas à vista! Tenho que me livrar dele.
Enfiou uma roupa às pressas, lavou a cara, deu uma ajeitada no cabelo e foi verificar se o visitante ainda estava dormindo. Para sua surpresa, a cama estava vazia. Sobre o travesseiro havia um bilhete que dizia: “Desculpe. Muito agradecido. Até breve”.
Ao invés de alívio, Lúcio sentiu um vácuo de frustração invadir seu peito. Estranhou o sentimento, pois ainda há pouco, antes de constatar sua ausência, estava pensando numa maneira de se livrar dele… Percebeu então que ficara enganchado na figura do major.
Um sentimento de rachadura interior veio em seguida. Como se o fato de ter-se afeiçoado ao major Cruz fosse uma traição à Dália, a quem desejava entregar-se de corpo e alma. Pobre mortal. Apesar de sua mente quase aberta, no fundo de sua memória coletiva duas palavrinhas se levantavam e cutucavam sua consciência – fidelidade sexual. O desejo de encontrá-la aumentou como uma forma de suas emoções se desculparem. Livrou-se novamente do grip no depósito da estação pra facilitar a volta dela.
A casa de Lúcio, toda de pedras num estilo singular, tinha uma aparência extremamente sólida. As grossas paredes mantinham a temperatura interior sempre agradável. Nos dias quentes como aquele Lúcio gostava de tirar uma soneca depois do almoço. Desta vez seu pesadelo apresentava um casal em luta, que às vezes se mostrava como Adônis e Dália e outras vezes como sua mãe e um anjo.
Horas depois, foi retirado dos braços de Morfeu por uma leve trepidação que vinha de fora. Ergueu-se, abriu a cortina do quarto e se deparou com uma cena inesperada. Dália, munida de uma espécie de perfuratriz, fazia finos buracos no chão do seu pomar.
– Desculpe se o acordei. Você disse que eu podia estudar seu espaço à vontade, não disse? – ela foi falando quando ele se aproximou.
– Certo, eu disse, mas não imaginava que fosse realizar escavações. Posso saber o que está fazendo?
– Pesquisando as rochas que existem embaixo. Acho que seu espaço pode ser um sítio arqueológico.
– Por que acha isso?
– Você sabe quem construiu essa casa?
– É uma herança de família. Meu pai deixou pra minha mãe.
– Seu pai?
– Pouco sei dele. Teve um romance com minha mãe. Ela engravidou de mim. Antes que eu nascesse ele nos deu essa casa e desapareceu. Não sei quando foi construída.
– Tem alguma fotografia dele?
– Não. Minha mãe dizia que ele não se deixava fotografar.
– Os índios americanos achavam que a foto lhes roubava a alma, pensamento que não é de todo errôneo. Sabe de onde vem o estilo da casa, essa forma?
– Não faço a menor ideia. Sei apenas que é diferente de todas as casas que já vi.
– A casa tem um porão?
– Não… Procura alguma coisa específica?
– Apenas investigo, reconheço, avalio. Não se preocupe que não vou levar nada do que é seu. Vamos continuar a história?
Historia Oculta 4
Invejosos das conquistas dos mineradores do Abzu, que tinham sido substituídos no trabalho pelos lulus, os anunnaki refinadores de ouro da Mesopotâmia começaram a pressionar Enlil para que obtivesse os famosos trabalhadores de cabeça preta para trabalhar nas refinarias, no campo e nas construções de Nippur e Éden.
Ea se recusou a enviar os trabalhadores para a Mesopotâmia, dando a Enlil a oportunidade de demonstrar sua autoridade.
Enlil mandou desligar os contatos com a Terra para que sua ação não fosse monitorada.
“Ele fez um rasgo no Vínculo Céu-Terra.
Em verdade lançou um ataque armado
contra a Terra das Minas.”
Os anunnaki do Abzu recolheram todos os lulus e os confinaram no interior das minas, pensando assim impedir que fossem roubados. Foi inútil, pois Enlil trouxe uma arma extraordinária, um “machado que produz poder”. Tal arma era equipada com um “chifre” e um “cortador de terra” que perfuravam montanhas e muralhas. Enlil mandou abrir buracos nos abrigos, e retirou quantos lulus quis.
Assim, muitos lulus foram trabalhar no Éden. Esse incidente aumentou ainda mais o abismo entre Enlil e seu irmão Ea.
Este foi o primeiro confronto grave entre os dois príncipes, uma medição de forças. Ea, no entanto, sempre usando a via indireta, feminina, não considerou o roubo de Enlil de todo mau. Sentia prazer em ver sua criação sendo valorizada e requerida. Talvez pudesse exportar os lulus para Nibiru e outros planetas até com ganhos financeiros. Achou melhor não retaliar o irmão e manter a paz na colônia.
Com a crescente necessidade de produzir mais lulus para dar descanso aos deuses, aumentou o trabalho das “enfermeiras”, que também se revoltaram.
“A vida delas era cansativa e tediosa,
continuamente sofrendo cirurgias e gestando
aqueles seres inferiores…”
Foi a segunda greve do planeta.
Aproveitando que Enlil se ausentara do Éden e fora passar um shar no planeta natal, as enfermeiras entraram em greve. Ea e sua irmã Sud se propuseram novamente a resolver o problema que, em última instância, eles mesmos tinham criado. Era necessário dar aos lulus a capacidade de auto-reprodução, a sabedoria no sentido bíblico da palavra.
Primeiro foi necessário criar uma fêmea reprodutora. Desta vez as manipulações genéticas foram realizadas ali mesmo no Éden, mais precisamente em Shuruppak, o centro médico.
Desse processo nasceu a primeira mulher fértil. Na língua sumeriana, uma mesma palavra significava vida e costela. Daí uma tradução bíblica machista fantasiar que a mulher foi tirada da costela do homem.
Ea deu à fêmea o nome de Eva, que significa – aquela que dá vida, que pode parir.
Adama e Eva eram compatíveis e reprodutores. A palavra Adama – ou Adão – significa imagem, e se tornou um termo genérico para designar os machos humanos. A palavra Eva designava as fêmeas de um modo geral.
A serpente, que etimologicamente significa aquele que decifra, é um dos símbolos de Ea.
A serpente do Jardim do Éden não era certamente um animal, uma vez que podia conversar com Eva. A lendária serpente era Ea, que criou os humanos e lhes deu o “conhecimento”, a capacidade de procriar.
Mas nem toda a sua capacidade genética Ea deu ao novo ser.
“A Adama dera a Sabedoria.
A vida eterna não lhe tinha ele dado.”
Ea não deu a Adama o gene da longevidade nibiruana.
O que é um gene, o que o faz se expressar, é tema de intensas pesquisas atualmente. Mas já foi demonstrado em numerosos estudos que a resposta para a longevidade está nos genes. Alguns desses estudos feitos em vírus determinaram que estes possuem filamentos de DNA capazes de “imortalizá-los”.
O lar de Enlil na região entre os rios era a área mais bela e bem cuidada do planeta, repleta de pequenas vilas com seus bem tratados jardins, exuberantes pomares, plantações e criação de aves e gado – um verdadeiro paraíso. Era chamado Éden, o bíblico jardim. Passado um shar, Enlil regressou de Nibiru e encontrou os humanos em franca multiplicação, povoando o Éden.
Virou uma fera!
Aqueles novos seres arrogantemente parecidos com a família real, poluindo o visual do Éden com suas tendas e construções pobres, o deixaram muito irritado. Muitas vezes antes seu irmão Ea tinha proposto tornar os lulus auto-reprodutivos, mas Enlil sempre fora contra. Ele temia que a nova espécie pudesse alcançar um grau de evolução suficiente para escapar da escravidão e desejar a imortalidade.
Sem o consentimento de Enlil, Ea dera aos lulus o sexo reprodutivo – uma afronta às suas ordens. Sem pestanejar, Enlil decidiu expulsar os humanos do Éden.
Segundo o Gênesis bíblico que, repito, é uma colagem de pedaços do Épico da Criação…
“Então, a divindade Javé disse a seus pares:
Observem Adão, tornou-se um de nós,
conhecedor do bem e do mal.
E agora não poderia ele estender a mão
e partilhar da Árvore da Vida [o maná],
e comer e viver para sempre?
E a divindade Javé expulsou Adão do pomar do Éden.”
A Bíblia tem cada disparate! Que pares? O que se sabe é que pares é sinônimo de semelhantes. Como Javé, Deus único, falou com seus semelhantes? Evidentemente esses pares eram os demais nibiruanos do Panteão dos Doze.
Expulso do Éden pela divindade Javé/Enlil, o precoce Homo sapiens espalhou-se pela Europa, Ásia e outros continentes. A própria Bíblia localiza o Jardim do Éden, ou paraíso, na Mesopotâmia.
“Javé Deus plantou um jardim em Éden,
e aí colocou o homem que modelara…
Um rio saía de Éden para regar o jardim,
e de lá se dividia formando quatro braços.
O primeiro se chama Fison… O segundo é Geon…
O terceiro rio se chama Tigre,
que corre pelo oriente da Assíria.
O quarto rio é o Eufrates…”
Gênesis capítulo 2, versículos 8 a 15
Quem “plantou um jardim”, ou seja, criou a cidade a qual deu o nome de Éden foi o príncipe Ea. Quem “modelou” o homem também foi Ea, juntamente com Sud.
Sud, também chamada de Ninti – senhora da vida – foi conhecida durante muitos milênios como “A Mãe da Humanidade”, recebendo o apelido de Mama ou Mammi, até hoje presente em quase todos os idiomas como diminutivo de mãe.
Ea foi conhecido por dezenas de milênios como o pai criador da humanidade, o geneticista que também era simbolizado por duas serpentes entrelaçadas, a forma do DNA que até hoje é o símbolo da medicina.
Apesar de ainda desacreditar dos relatos dela, quando Dália terminou Lúcio estava muito emocionado, como se tivesse presenciado pessoalmente o ato criador de nossa espécie. Sentia um enorme vazio no peito, sua curiosidade parecia saciada e seus pensamentos não conseguiam encontrar questões relevantes em tudo que acabava de ouvir.
Anoitecera.
Ela estava cansada e um pouco triste. Talvez pensasse que a criação do homem não fora uma boa idéia. Mas começou a mover a mão devagar, de um lado para o outro, apontando o espaço com o dedo, fazendo Lúcio vasculhar o céu.
– O que está vendo? – ela perguntou.
– Estrelas.
– Ou seriam pontos de luz?
– Porque diz isso?
– Olhamos para as estrelas e temos a sensação de algo muito concreto, imutável e eterno. No entanto, a maioria das estrelas que vemos hoje não existe mais. A luz delas demorou tanto pra chegar até aqui que elas já morreram. Se as estrelas que vemos agora não existem, o que existirá realmente?
Ele permaneceu mudo, sem resposta. Ela continuou…
– Acredita que existam alienígenas vindos das estrelas ou de outros planetas?
– Nunca vi nenhum alienígena, mas sempre desejei que um disco voador baixasse no meu quintal.
– Não tem medo?
– Teoricamente não. Talvez, se eles aparecerem mesmo, eu fique muito assustado. Dizem que são feios, horripilantes, verdes…
– A forma… Ou seriam apenas robôs humanoides enviados de fora?
– Pode ser. Já conhecia essa hipótese. Se forem robôs é pior. Máquinas não têm piedade nem compaixão.
– E os alienígenas teriam piedade e compaixão?
– Não sei. É que quando penso num alienígena, automaticamente projeto nele qualidades humanas. Acha que isso é uma limitação minha?
– Não. É uma resposta do inconsciente coletivo que permeia todos nós – nossa semelhança com os extraterrestres. O que eu acho é que está na hora de lhe fazer uma revelação muito importante que poderá assustá-lo.
– Diga.
Antes de falar, ela pegou a mão dele, como que para confortá-lo de antemão do trauma que a revelação poderia causar.
– Sou uma fêmea alienígena, descendente direta dos extraterrestres de Nibiru. Uma deusa, se preferir. Em anos terrestres, já vivi 126 mil.
Lúcio entrou em choque, catatônico, os olhos parados nem ousavam piscar. O que ela estava dizendo? Embora já tivesse passado por sua cabeça essa possibilidade… Num flash, os fatos estranhos que ocorreram nos encontros que tiveram espocaram em sua memória. A metamorfose na banheira, o zoom no restaurante e todas as estranhas sensações e percepções que lhe provocou desde que surgira…
Permaneceu mudo, o corpo latejando, zonzo até desmaiar.
CAPÍTULO OITO
Sem saber como, Lúcio fora parar em sua própria cama. Passou a noite lutando com os retorcidos lençóis da memória e não despertou com o galo, como de costume. Era como se não quisesse acordar, não ter de se defrontar com as informações que o levaram ao desmaio na noite anterior. Entretanto, uma revoada sonora de estridentes papagaios rebentou seus pesadelos na praia da realidade. Seu corpo gemia, reclamando como se estivesse enfrentando uma ressaca.
As últimas declarações de Dália passaram da lembrança ao presente. Lúcio foi tomado por um medo súbito e profundo. As glândulas suprarenais destilaram adrenalina disparando o coração, mais sangue bombeando os músculos, mais ação no cérebro. Diante do medo, o instinto de sobrevivência prepara o corpo para lutar ou fugir. Mas Lúcio não fugiu. Ficou andando ao redor da casa, fumando e lutando para desamarrar os próprios músculos da dureza que o medo provocava. Um pensamento central se repetia: – Será que ela disse mesmo aquilo, que era anunnaki, ou foi apenas outro sonho? Se ela for mesmo uma ET estou em perigo?
Nisso, como que para afastá-lo daquele assunto, um carro chegou e estacionou diante da casa. Era o major Cruz dirigindo um conversível preto. Totalmente refeito do porre e muito sorridente, trazia nas mãos uma caixa de uísque escocês.
– Vim me desculpar pelo vexame da outra noite. É que fazia tanto tempo que eu não relaxava e você foi tão hospitaleiro. Fazia muitos anos que eu não me largava daquele jeito. Encontrar gente receptiva e calorosa como você não é fácil. Aceite estas garrafas e perdoe meus deslizes.
Diferente das outras vezes em que se vestia formalmente, o major usava um jeans da moda, camiseta esportiva e sandálias. Parecia mais jovem, mais vibrante, mais…
– Desculpe também por aparecer assim sem avisar – ele complementou.
– A hora é boa. A que devo a honra de sua visita, major?
– Pode me chamar de Adônis, meu nome de batismo.
– É cristão?
O major soltou uma larga e gostosa gargalhada.
– Claro que não! O que lhe deu essa ideia? Nome de batismo? É um jeito de dizer quando a gente se refere ao primeiro nome, não é? Não sou uma pessoa religiosa. Sou bem carnal.
A última palavra foi dita com tamanha carga erótica que Lúcio achou melhor mover-se. Teve a nítida impressão de que o major viera disposto a cativá-lo fisicamente.
– Deseja beber alguma coisa? Um café? – disse, afastando-se em direção à cozinha.
– Um suco, se tiver.
– Vou buscar.
Mas o major, ou Adônis, não deu trégua.
– Vou com você. Gosto de cozinhas.
Enquanto preparava o suco, Lúcio sentiu que o policial às suas costas devorava suas nádegas com os olhos. Contraiu-se, apreensivo.
– Lúcio, você nunca mais teclou a vermelha. Ficou chateado comigo depois do vexame da outra noite?
– Não é nada disso. Também já tomei muitos porres e foi um prazer hospedá-lo em minha casa. É que ando muito atarefado, trabalho atrasado, não tenho conseguido produzir nada nos últimos dias… A verdade é que você me deixa…
– Ainda está com o aparelho que lhe dei?
– Não, não estou – confessou, antes de pensar.
– Que bom que deu uma resposta sincera. Aumenta minha confiança e admiração por você. Ontem resolvemos checar onde andava seu aparelho. Quando chegamos ao local, era um armário do bagageiro da estação central do metrô. Você o deixou lá?
Sem querer continuar sincero, nem querer expor sua relação com Dália, Lúcio inventou umahistória boba.
– Esqueci seu celular na estação. Foi assim. Tive que esperar uma pessoa que ia chegar de viagem e… No balcão da companhia me informaram que houve um acidente na estrada de acesso e os veículos iam atrasar bastante… Você que é policial sabe como esses lugares estão coalhados de trombadinhas. Temi que me roubassem um aparelho tão precioso e achei melhor guardá-lo num armário enquanto esperava. Resultado: a pessoa chegou e fiquei tão entretido com ela que me esqueci de apanhar o aparelho na saída…
Adônis não engoliu a história, mas educadamente manteve uma expressão neutra durante a narrativa e ainda no final comentou: – Agradeço sua honestidade. Quer que eu mande buscar o aparelho na estação? Meus homens podem fazer isso sem o menor problema…
– Não se preocupe. Eu vou mesmo praquelas bandas hoje e posso…
– Eu me preocupo com sua segurança. Tem certeza de que aquela mulher não o procurou mais? Ela pode ter aparecido disfarçada. Procure se lembrar… Não o culpo por ter se interessado pelo corpo dela. É uma bela mulher.
– Sem dúvida.
– Com que nome se apresentou a você?
– Dália.
– Dália… Bela escolha ela fez desta vez.
– Por quê? Ela tem outros nomes?
– Isso tem importância?
Voltaram pra sala e se instalaram nas poltronas. Lúcio queria ocultar o que Dália revelara, mas sentia-se enredado pelo intrigante olhar do visitante que aguardava que ele iniciasse a conversação. Respirou fundo e abriu o jogo.
– Sabia que Dália é uma alienígena?
– Sabia – respondeu o major após curta reflexão.
A resposta atingiu Lúcio como a martelada de uma sentença. “Dália é mesmo uma extraterrestre! O major acaba de confirmar. Eu não estava sonhando!” – pensou, ouvindo suas palavras se repetirem em ribombantes ecos pelos labirintos do cérebro.
– E porque não me contou antes?
– Não queria assustá-lo, meu querido. Em seu lugar, outra pessoa entraria em pânico. Poucos estão preparados para encarar esta verdade – a existência de extraterrestres. É preciso ter flexibilidade de pensamento, facilidade de desprendimento de conceitos velhos e uma grande abertura mental para o aprendizado de ideias novas. Sabe que estou gostando mais de você a cada encontro? Você me surpreende! Se naquele dia, no banho turco, eu lhe dissesse que você estava sendo perseguido por uma fêmea extraterrestre iria rir de mim, não ia?
– Acho que sim. Estou tão confuso, minha cabeça está doendo muito…
– Deixe-me ajudá-lo – disse Adônis, colocando o indicador da mão direita na testa de Lúcio.
O alívio foi imediato.
– Nossa! É também curandeiro, além de policial?
O major desconversou – Sinto que tem alguma coisa pra me dizer.
Lúcio respondeu com outra pergunta. – Se a Interpol sabe da existência de extraterrestres em nosso planeta, por que nunca foi divulgado?
– A quebra de um tabu tão forte como é a ideia de que não somos as únicas criaturas inteligentes do universo, que não somos a obra prima de Deus, pode causar sérios distúrbios sociais Mas a questão maior é de segurança, segurança nacional e planetária.
Lúcio disparou uma sequência de perguntas.
– Então acredita que fomos criados em laboratório? Sabe de toda a história? Essa história dos nibiruanos é verdadeira? Dália é mesmo uma anunnaki como me disse?
– Não sei exatamente o que ela lhe contou. Nibiru é uma realidade e ela é mesmo uma fêmea anunnaki. Dizem que está viva há mais de 100 mil anos. Vou lhe dizer a verdade, Lúcio. Não quero pegar Dália, matá-la, prendê-la ou qualquer coisa do tipo. Estou farto de violência.
– Então porque a está perseguindo? São ordens superiores?
– Faço parte de uma equipe internacional que observa os movimentos dos alienígenas. Minha missão é descobrir o que ela está procurando ao redor de sua casa.
É claro que Lúcio se lembrou de imediato das perfurações no solo de seu pomar. Tentou guardar para si, mudando rapidamente de assunto.
– Você disse que ela poderia me matar. Por quê?
– Quis amedrontá-lo pra que me ajudasse mais. O que não quer dizer que ela não possa acabar com sua vida. Dos anunnaki pode-se esperar qualquer coisa.
– Não sinto que ela queira me matar. Pelo contrário, percebo uma vibração muito amorosa vindo dela. Em todos os nossos encontros tudo o que senti foi carinho emanando de suas palavras, de seus gestos e, principalmente, do olhar.
– Você não pode ver nem sentir com clareza. Está enfeitiçado. As mulheres anunnaki são muito ardilosas. Ela está apenas querendo ganhar sua confiança, não percebeu?
– Não me leve a mal. Tenho meus motivos para crer nela.
– É isso o que ela quer e parece que está conseguindo. Ganhar sua confiança pra usá-lo em alguma trama ilícita. Desculpe a intromissão em sua vida pessoal, mas se importaria de me contar o que realmente fazem durante seus encontros, o que acontece?
Havia algo no major que o desafiava e atraía. Seria belo? Tinha um jeito peculiar de olhar que parecia estar focado no infinito, de tal modo que Lúcio não sabia se Adônis olhava pra ele ou através dele. O homem ouvia tão atentamente que era possível perceber a leitura expressa em sua fisionomia. Os lábios sempre úmidos tremiam levemente.
– Ela está me contando sobre a História Oculta –- informou Lúcio.
– Sobre os anunnaki?
– Isso.
– O que ela pretende? Gerar o caos? Admitir a existência de extraterrestres é uma coisa. Admitir que fomos criados por um ser alienígena é outra. A revelação oficial de que somos apenas uma experiência genética de extraterrestres vai abalar o sistema cultural do planeta. Pra quê? Você é inteligente e sabe muito bem que a instabilidade que tal notícia poderia causar geraria a estagnação da economia e da vida em geral. Felizmente, sem desrespeitar sua profissão de escritor, não acredito que um livro possa abalar coisa alguma. Ou você tem essa pretensão?
– Não tenho pretensão alguma. Estou escrevendo porque Dália me pediu, como um favor especial a ela. E também por que já me pagou pelo trabalho.
– Pagou? Sorte sua. Vamos supor que seu livro faça muito sucesso e seja lido por alguns milhões de pessoas. Que diferença isso fará? Quase ninguém está disposto a trocar suas crenças religiosas por um punhado de informações de um livro, por mais corretas que sejam.
– Eu sei que é mais fácil derrubar um império do que as crenças religiosas de um povo.
– Exatamente! Posso lhe fazer uma pergunta pessoal?
– Claro.
– Você tinha interesse nesses assuntos antes de Dália aparecer?
Lúcio procurou na memória e constatou que o interesse estava lá há muito tempo, embora não estivesse plenamente consciente disso. Formara-se em antropologia e adorava história antiga e ficção científica, temas que estiveram presentes ao longo de sua vida.
– Sempre fui muito ligado nesses assuntos – respondeu.
– Outra questão: por que não consegue escrever um romance, já que esse é seu sonho?
– Como sabe disso?
– É o sonho de todo escritor, não é?
– Tenho medo de encarar. Um romance é o maior desafio dentro da literatura. Não me sinto preparado.
– Mas pensou que talvez a história de Dália pudesse servir de base para um romance interessante, não pensou?
– Confesso que cheguei a pensar nisso.
–- Ela não tem nenhum interesse nessa obra que está lhe ditando. Está apenas tentando realizar seu sonho, não percebe? Ela conta uma história da qual foi testemunha ocular. Ela quer se valorizar diante dos seus olhos, uma velha e infalível tática de conquista anunnaki que funciona sempre, principalmente com homens solitários como você.
Aquilo abalou sua segurança, tanto que na hora Lúcio sentiu uma tontura na cabeça e na boca, um gosto de traição. Como se tudo referente à Dália devesse ser revisto. Seria mesmo apenas um jogo de sedução? Talvez ela o estivesse usando para alguma finalidade que ele desconhecia…
– Já que você parece saber de tudo, Adônis, então me diga o que ela quer de mim?
– É isso justamente o que eu não sei e quero que você me ajude a descobrir. Já fiquei de plantão horas a fio na estrada, esperando que ela passasse. Como ela chega até sua casa? De carro ela não vem.
Naquelas alturas, o que dizer? Dizer que Dália tinha uma casinha do outro lado da floresta seria o mesmo que entregá-la na bandeja. Dados demais para equilibrar. O excesso de esforço mental esgotava a carga de energia que Lúcio dispunha. Precisava urgentemente relaxar, aliviar o cérebro pra acordar daquele pesadelo ou daquela realidade, que, embora excitante, o exauria.
Adônis deve ter percebido sua fraqueza porque se levantou, preparando-se para partir.
– Não vou mais tomar o seu tempo, Lúcio. Mas antes, preciso saber se pretende me ajudar. Juro que não vou machucar sua amiga alienígena.
– Ela me disse que vocês da Interpol também são criminosos – jogou Lúcio – Em quem devo acreditar?
Adônis refletiu rápido e propôs: – Porque não arranja um encontro, uma acareação entre ela e eu, para esclarecer as coisas? Você será o juiz.
– Parece uma boa ideia, mas quem me garante que não irá prendê-la?
– Olhe nos meus olhos, Lúcio. Acha que pode confiar?
Muitos aprendem a mentir com os olhos. Mas os de Adônis… Lúcio sentiu uma espécie de conforto mental.
– Está certo, confio.
– Então faça o seguinte: quando estiver com ela, toque a tecla vermelha e eu chegarei. Não lhe diga nada. Vamos fazer-lhe uma surpresa.
– Combinado.
Antes que tivesse tempo de resistir, o major deu-lhe outro abraço daquele apertado e foi saindo, mas quando alcançou a porta, virou-se com mais uma questão.
– Não há nada que ela tenha dito ou feito aqui em sua casa que queira me contar? Tente se lembrar.
– Vou tentar – respondeu, visualizando uma tela negra para esconder os pensamentos.
– Se resolver falar é só apertar a vermelha.
CAPÍTULO NOVE
Era lua nova e nenhuma réstia de luz entrava pela veneziana. O quarto boiava nas trevas enquanto Lúcio, da cama, olhava o nada. Tinha a sensação de que seu cérebro se liquefazia e girava solto do crânio, talvez se preparando pra uma nova formatação.
Um crepitar de labaredas arranhou seus tímpanos. Vinha da sala. Vestiu um roupão e foi verificar.
Com muita eficácia, Dália tinha acendido a lareira, estava sentada sobre o tapete e esquentava as mãos voltadas para as chamas.
– Sentar-se diante do fogo é um dos atos mais antigos que podemos repetir ainda hoje – ela foi dizendo ao senti-lo aproximar-se.
– É como voltar ao tempo das cavernas – ele disse, aproximando-se temeroso, mas sentando-se junto dela.
Dália fez-lhe um carinho na face, e como quem oferecesse um presente disse: – Hoje pode fazer as perguntas que quiser.
Que situação! Quantas perguntas há pra se fazer a uma alienígena? Dezenas se amontoando no portal de decisões… Resolveu primeiro se certificar.
– Você é mesmo alienígena?
– Você não é burro. Tem dados suficientes pra saber que não sou exatamente humana.
– Aquele clarão que eu pensei ter visto ao nascer do Sol, naquela primeira manhã quando você apareceu disfarçada de velha doente…
– Era eu mesma. Passei muito perto do transformador instalado naquele poste da estrada. Recebi um choque e brilhei.
– Brilhou?
– A pele não é o limite do meu ser nem do seu. O campo de energia de um indivíduo pode alcançar centenas de metros e também pode emitir filamentos a qualquer parte do universo imaginável, instantaneamente. Se você percebeu o brilho criado pelo choque da energia do transformador com meu corpo energético é por que têm uma sensibilidade acima da média dos humanos. Parabéns! Na verdade, todos vêm tudo, mas não percebem.
– E aquela magreza que você mostrava quando chegou?
– Posso me desidratar propositalmente.
– Onde você vive? Tem uma casa, família, um lar?
– Família é um fenômeno muito arcaico e limitante. Temos grupos, amigos, amantes…
– E vivem normalmente entre as pessoas?
– Normalmente não. Temos que estar sempre mudando de lugar, refazendo o círculo de amizades pra esconder a ausência de envelhecimento aparente. É desgastante.
– Onde nasceu?
– Aqui mesmo, na Terra. Nasci e passei minha infância no Éden, onde hoje é Bagdá.
– Disse que tem 126 mil anos?
– Disse.
– Você não é velha, é arcaica! – tentou brincar.
– Mas aparento uns 35, não acha? – ela disse, coquetemente dando um giro para que ele a apreciasse melhor.
– Até menos, eu diria.
– Veja: 35 multiplicado por 3.600 é igual a 126 mil.
– Já entendi. A cada 3.600 anos terrestres vocês envelhecem o que nós envelhecemos em um ano. Em 126 mil anos você envelheceu o correspondente ao que se envelhece na Terra em apenas 35 anos. Inacreditável… Então, atualizando para os dias de hoje, você seria iraquiana. Tem raiva do presidente americano?
– O presidente é apenas um fantoche – ela respondeu friamente. Em seguida, brincando com as mãos, estalou os dedos e capturou novamente a atenção dele.
– Agora podemos continuar a desvendar a História Oculta?
Ele não podia fazer nada além de concordar, pois estava num estado semelhante ao de um místico fanático ajoelhado ao pé do altar da santa – em êxtase. E as perguntas que ele queria fazer? Todas desciam pelo ralo do passado.
História Oculta 5
Paralelamente à vida dos anunnaki, dava-se a evolução do homem na Terra, que foi lenta e fragmentada por desastres e glaciações, sobretudo entre os anos 200 mil e 75 mil a.C.
A humanidade já alcançou altos níveis civilizacionais, em muitos aspectos mais elevados que os padrões atuais. Essas civilizações foram todas dizimadas. A humanidade, como um círculo vicioso, nasce, floresce, amadure e é exterminada por eras glaciais ou catástrofes terríveis. Mas sempre torna a renascer graças à intervenção divina, ou seja, dos nibiruanos.
Tipos regressivos de homem vagaram pela Terra por dezenas de milênios. Por outro lado, muitos agrupamentos humanos que eram monitorados por Ea se desenvolveram mais rapidamente, uma vez que ele tinha interesse no futuro de suas criaturas e não poupava esforços para impulsionar sua evolução. Tal fato fica evidenciado quando sabemos que, recentemente, por volta do ano 49 mil a.C., ele colocou humanos em cargos de governança em Shurupak, território reservado aos deuses.
A sodomia passou a ser proibida entre os humanos, ficando as variações sexuais sagradas, isto é, reservadas aos deuses. Os anunnaki precisavam que os humanos se reproduzissem bastante para aumentar o potencial de exploração do planeta, daí a proibição do “desperdício sexual”, ou seja, do sexo sem fins reprodutivos, coisa que a Igreja Católica teima em defender até hoje.
Enlil, ao contrário, estava desgostoso com o que acontecia sob seu comando. A fome grassava, seus escravos morriam e os que sobravam ficavam imprestáveis pro trabalho. Outro problema também molestava sua mente – os semideuses. Os anunnaki engravidavam as filhas dos homens gerando semideuses que, apesar de terem uma vida curta como a dos humanos, eram mais fortes, mais inteligentes e muito mais atrevidos. Os semideuses tentavam apropriar-se do maná e das armas nucleares que os deuses protegiam. Além disso, acumulavam sabedoria que lhes permitia construir pirâmides de lançamento de foguetes, como foi a tentativa com a Torre de Babel. Mais alguns passos e os semideuses poderiam ameaçar a soberania da colônia.
Por essas e outras razões menores, como o eterno desejo de obstruir os interesses do irmão Ea, o senhor dos Céus e da Terra, Enlil, começou a tramar o fim da humanidade.
Graças ao equilíbrio de forças no Panteão, isso não aconteceu durante milênios. Porém, aproximadamente há 13 mil anos, surgiu a oportunidade.
A oportunidade que Enlil esperava para realizar suas intenções surgiu quando o posto científico da ponta da África enviou-lhe um comunicado sobre uma situação perigosa. A crescente capa de gelo que existia sobre a Antártica tornara-se instável. Estava apoiada sobre uma camada de lama escorregadia.
A instabilidade surgira justamente porque Nibiru se aproximava da Terra. Sua força gravitacional poderia fazer a capa polar deslizar para o Oceano Pacífico, causando um maremoto que inundaria todo o planeta.
Enlil fez os anunnaki jurarem que não avisariam a humanidade sobre a inundação, para que não tivessem tempo de arquitetar alternativas de sobrevivência.
Em sua visita ao sistema solar, Nibiru aproximou-se da Terra em demasia, provocando a maior de todas as catástrofes – o Dilúvio Universal.
De suas espaçonaves, alguns deuses festejavam enquanto a grande maioria sofria ao assistir as águas varrerem as milenares cidades e monumentos que haviam construído.
Eu mesma estava lá, observando do alto, e fiquei aterrorizada. Tive ganas de matar a deusa Ishtar, que fazia um escândalo porque não pudera salvar todos os seus tesouros.
Mesmo tendo feito o juramento imposto por Enlil, de não avisar os humanos da tragédia, mais uma vez Ea descumpriu as determinações do irmão. Secretamente colocou suas hostes a serviço da salvação de muitos humanos, fornecendo-lhes submarinos e ajudando-os a sobreviver em cavernas nas montanhas dos Himalaia, dos Andes e dos Alpes. A famosa Arca de Noé é uma alegoria criada a partir desse fato.
O Dilúvio Universal está presente nas mitologias das mais importantes civilizações e até mesmo em lendas de tribos indígenas.
O golpe que a Terra sofreu com o dilúvio foi o mais forte já registrado desde o choque anterior com o satélite de Nibiru, quando a Terra ainda era Tiamat. Desta vez, o abalo foi tão grande que inclinou o eixo do planeta em 23,5 graus, criando assim as quatro estações climáticas: primavera, verão, outono e inverno.
A narrativa deve ter sido dolorosa, pois ela teve que relembrar terríveis momentos de seu passado. Parecia exausta.
– Agora preciso partir.
Abriu a porta da sala e desapareceu na noite sem despedir-se nem olhar para trás.
Desta vez não vou deixá-la escapar assim! – ele decidiu.
Deixou passar meia hora, entrou no carro, contornou a reserva florestal e estacionou bem defronte da casinha onde ela entrara na outra noite.
Para sua surpresa, a porta estava entreaberta. Ele entrou e se deparou com uma cena linda. No centro da sala, sobre um grande tapete, Dália estava sentada na posição de lótus, usando apenas um robe de seda branca quase transparente.
Instantaneamente lhe veio à mente uma cena ocorrida quando ele tinha apenas cinco anos, que pode ter sido sua primeira experiência heterossexual.
Todos tinham saído e ele ficara aos cuidados da empregada. Ela era pouco mais que uma menina, uma adolescente cujos hormônios crepitavam à flor da pele. Começaram brincando de cavalinho. Ele montado nela. Depois ela sugeriu que tirassem as roupas e invertessem o galope. Ela deitou-se de costas e ele montou. Entre um e outro galope os genitais se roçavam. Ele tinha apenas cinco anos…
– Sinta-se em casa – ela disse, com um sorriso quase felino.
– Como sabia que eu vinha?
– Foi você quem me avisou de longe, com seus pensamentos ardentes.
Pela primeira vez não lhe causou nenhum incômodo o fato de ter seus pensamentos lidos mesmo à distância, e foi se jogando pra cima dela.
Foi uma experiência única. No primeiro abraço ele levou tantos choques que desmaiou.
Sonhava com a mãe outra vez quando um perfume inebriante de comida o despertou. Na cozinha, envolta numa toalha, Dália cozinhava na maior intimidade com o ambiente, cantarolando feliz como uma esposinha recém-casada. Ao vê-la assim, Lúcio ficou curioso sobre o que ocorrera entre eles depois do desmaio. Mas ela não deu brecha.
– Para lhe provar que não sou apenas uma guerreira contadora de histórias, hoje você vai comer o néctar dos deuses.
– Néctar?
– Pode chamar de Maná, Santo Graal, Pedra Filosofal e muitas outras expressões que significam a mesma coisa. Embora pareça ficção arcaica, todas essas expressões se referem a algo bem real – um tipo específico de ouro. O tipo correto de ouro é a fórmula mais preciosa e oculta deste planeta. Desde que os anunnaki chegaram à Terra, tiveram que enfrentar muitas situações adversas à sua natureza. O planeta passou por severas condições físicas e climáticas. Para sobreviver ao desgaste corporal precisavam de um apoio extra – o tal maná, que mantém a longevidade e outras faculdades orgânicas. Mais tarde, os alquimistas viriam a ter contato com esse conhecimento, tanto que seus dois objetivos principais resumiam-se a transmutar chumbo em ouro para alcançar a vida eterna. Consta na Bíblia que Enlil ou Javé alimentou os judeus com o maná durante a travessia no deserto.
A mesa estava posta com detalhes precisos e um vaso de flores silvestres de um lado. O prato principal era peixe grelhado coberto com um molho esbranquiçado.
– O molho é ouro segundo a fórmula secreta, para aumentar sua vida e sua capacidade.
– Não parece ouro, parece… esperma.
– É a forma que o ouro fica depois de trabalhado. Os alquimistas levavam décadas pra descobrir essa fórmula. Sabia que muitos conseguiram e estão vivos, soltos por aí?
– Achava que fosse apenas lenda.
– Pode estar certo de que muitos encontraram o Santo Graal.
– O Graal? Pensava que o Santo Graal fosse o cálice que Cristo usou na última ceia, segundo a lenda…
– Foi uma associação que os místicos fizeram durante muito tempo e até hoje ainda fazem. Contam os cristãos que Cristo bebeu no cálice sagrado e, por isso, ressuscitou. Ou seja, associam o cálice à vida eterna – coisa que só o maná pode produzir até certo ponto.
– E onde estão esses alquimistas?
– Evidentemente não são figuras públicas. A vida social só é boa para adolescentes e velhotes doentes. Quase todos os alquimistas são ermitãos. Alguns têm discípulos, mas todos fazem questão de manter o segredo. Eles estão constantemente mudando de lugar e de país para não chamar a atenção sobre sua incrível longevidade, como nós, os anunnaki. Conheço um que já vive há mais de trezentos anos.
– Só vendo para crer.
– Há certas coisas que só crendo pra ver. Prove o peixe.
Provou e achou o gosto esquisito. Tinha um efeito expansivo na boca, parecido com o da pimenta mexicana, mas sem aquele ardor insuportável.
– É a droga dos deuses, o maná – ela enfatizou.
Imediatamente, a atenção dele em relação à deglutição se ampliou. Sentia cada mastigação, cada engolida, o alimento dissolvendo-se no estômago e entrando na corrente sanguínea. Então olhou pra mesa e percebeu que os diversos pratos de alimentos apresentavam uma grande variedade de cores e estavam dispostos na mesa formando agradáveis desenhos, onde seus olhos projetavam um caleidoscópio. Na salada havia pétalas de flores comestíveis, rosas, violetas e capuchinhas.
– Quer uma dica de alimentação? – ela disse, percebendo a admiração dele pelo arranjo da mesa.
– Diga.
– Quanto mais variar as cores, mais apetite. Quanto mais variar os alimentos, quanto mais sabores diferentes oferecer ao seu paladar, maior o desenvolvimento de suas faculdades mentais. O paladar e o pensamento estão localizados muito perto um do outro. A cada novo sabor o cérebro precisa atualizar suas programações e abrir novas portas. Quanto mais o cérebro funciona, maior sua capacidade. Veja os animais e os pobres, por exemplo. Comem sempre a mesma coisa, pensam sempre o mesmo, fazem sempre… Já se perguntou pra onde foi todo o ouro extraído do solo da Terra desde que o homem é homem?
Ele ficou pensando: ao ar livre não se vê ouro, nas joias, cada vez mais raramente, em próteses dentárias ou corporais o volume é muito pequeno, nas catedrais, muito pouco. No cofre dos bancos? Haja cofre pra guardar tanto ouro! Só pode mesmo ter sido consumido ou transformado de alguma forma.
– Não percebeu que sou mais metálica do que você?
– Percebi – respondeu Lúcio, lembrando-se dos choques que sofrera na banheira e do brilho metálico em seu perfil, reflexo do luar quando estavam na varanda.
– Já comi muito ouro. Não sou exatamente assim como me vê.
– Pode explicar?
– O que vê em mim é apenas a projeção de sua mulher interior. Temos a habilidade de entrar num estado que chamamos de tela pura. Nesse estado, tudo o que os humanos vêem em nós é projeção, reflexo puro, sem interferências de nossas personalidades.
– Mulher interior?
– Você deve conhecer o conceito psicológico chamado transferência?
– Conheço.
– Isso ocorre em maior ou menor intensidade com todas as pessoas que encontramos. No estágio em que se encontram os humanos é quase impossível verem uns aos outros como realmente são. O que veem são auto projeções.
– Acredito nisso – ele concordou.
– O conceito de mulher e homem interior parte do princípio de que recebemos metade de nossa carga genética do pai e metade da mãe. Assim, cada indivíduo é meio-homem, meio-mulher. Se ao nascer o bebê apresenta órgãos genitais masculinos, a cultura faz com que sua metade mulher seja eliminada da superfície e guardada no inconsciente. A parte guardada é chamada de mulher interior. O contrário se passa quando o bebê tem genital feminino. As meninas são obrigadas a reprimir sua porção masculina.
– Então você é minha mulher interior?
– Não. Aparento ser. É ela o que você vê em mim. Agora pode entender porque se apaixonou tão depressa. Vê em mim aquilo que lhe falta expressar, que o complementa. Na verdade, o desejo não passa de inveja.
– Dália, sei que até certo grau todos são espelhos que nos refletem. E nós humanos também podemos usar essa tela pura?
– A diferença entre os humanos e os anunnaki é uma questão de aprofundamento. Muitos humanos já usam a tela pura, mas não sabem disso. Observe as pessoas que têm o chamado carisma. São adoradas porque o povo projeta nelas suas ânsias interiores com facilidade.
Lúcio terminou de comer o peixe com ouro mais pelos possíveis resultados que a droga produziria do que por prazer ou fome. Mas o efeito foi imediato. Uma quentura subia pra cabeça e os pensamentos fluíam com grande facilidade – um prazer mental. Estava aceso e audaz.
– Dália, é hora de me dizer toda a verdade.
– A verdade? Será que existe uma verdade? Para existir uma verdade é preciso existir uma realidade. A realidade que cada pessoa percebe é individual, subjetiva. Existem bilhões de realidades. Tudo o que lhe digo eu o faço sinceramente.
– Então não existe a verdade, mas existe a sinceridade?
– É uma palavra mais concreta e mais subjetiva. Gosto mais.
Era muito bom estar diante de uma alienígena e fazer todas as perguntas, porém era frustrante não estar à altura de entender tudo o que ela tentava dizer. Depois dos choques que levara, seu ardor sexual sublimou-se em devoção. Lúcio se satisfazia escutando sua voz metálica, extasiando-se com sua beleza e sabedoria.
– Fale sobre esse tal major – ela pediu.
– O major disse que não quer matar, nem machucar você. Quer que eu arme um encontro entre vocês, de surpresa.
– Então você ganhou a confiança dele. Muito bom! E o que pretende fazer?
– Confesso que estou bastante dividido. Gosto dele, me parece uma pessoa boa. Disse que só quer saber o que você anda planejando, o que está procurando neste lugar. Quer se encontrar com você.
– E como vamos fazer isso, esse encontro?
– Ele pediu que eu tocasse a tecla vermelha quando estivesse com você. Quer lhe fazer uma surpresa.
– Espertinho!
– Não confia nele?
– Nem um pouco. Vamos usar esse grip, mas para pegá-lo.
– E que pretende fazer quando se encontrarem?
– Eliminá-lo, é claro.
Lúcio gelou.
– Se eu não matá-lo ele me matará. Não tenho outra saída – ela disse friamente.
– Não vou participar disso. Não quero que o mate.
– Sentimentalismo demais.
– Chame do que quiser.
– Apaixonou-se por ele? É compreensível. A cada dia você está mais vulnerável, menos seletivo, eliminando os últimos preconceitos, ultrapassando seus limites…
– Como sabe? Como vê isso em mim?
– Somos todos transparentes pra quem pode ver. Agora é melhor você voltar pra sua casa.
– Antes tenho uma pergunta. Publicar a História Oculta ainda tem importância pra você?
– Temos um provérbio que diz: sempre tenha mais de um objetivo quando empreender um projeto que exija um esforço considerável – ela disse.
– Então tem outros projetos simultâneos? Posso saber?
– Sim. Um deles se refere à pesquisa de sua montanha, de sua casa. Mas agora vai embora. Precisa descansar – disse, num tom carinhoso.
– Mas antes tenho mais duas perguntinhas.
– Está bem.
– O que está fazendo neste lugar, nesta casinha? Mora aqui? Ou alugou este lugar pra alguma jogada?
– Só aí já fez três perguntas. Aluguei este lugar pra estar mais perto de você durante nosso trabalho. Achei que era mais seguro. Na floresta posso despistar qualquer um que esteja me seguindo.
– Mas não me despistou… Ou permitiu que eu a seguisse na outra noite?
– Não tenho nada a esconder de você. Sei também que nunca me fará mal algum.
– Isso é certo.
– Então, boa noite.
– Uma coisinha mais. O que está procurando ao redor da minha casa?
– Isto não é “uma coisinha mais”. É um assunto delicado sobre o qual falaremos amanhã.
– E sobre o encontro com o major?
– Falaremos depois.
CAPÍTULO DEZ
O ouro, a tentativa de coito, o contato imediatíssimo de terceiro grau… Lúcio passou a noite em claro. Tinha medo de dormir e sonhar. Estava assustado com a nova realidade que se apresentava. Via clarões ou auras ao redor das coisas, tudo ao seu redor se mostrava vivo. Uma sensação de descontinuidade temporal fazia a vida caminhar em círculos.
Embora não fosse ainda algo desesperador, a insegurança emocional aumentava. Sentia estranhas vibrações vindas de baixo. Era nítida a sensação de que a qualquer momento a terra se abriria sob seus pés. Duvidava da solidez dos objetos. Em muitos momentos ficava trêmulo de puro medo, um medo desconhecido, uma frieza nos ossos.
Devia consultar um especialista em desequilíbrio mental, um psiquiatra? O que faria um psiquiatra ao ouvi-lo relatar que estava apaixonado por uma deusa extraterrestre de 126 mil anos?
Rolou na cama de um lado ao outro até encontrar uma posição na qual conseguiu relaxar. De repente um estalo, e Lúcio se sentiu solto no ar, próximo ao teto do quarto observando seu corpo deitado na cama embaixo. Não poderia dizer por quanto tempo esteve fora do corpo – foi uma experiência atemporal. Mas então começou a pensar que talvez tivesse morrido, abandonado o corpo, e se assustou tanto que foi puxado de volta para dentro da pele.
– Se estive fora do corpo, então o espírito existe mesmo – pensou.
Logo veio a luz do Sol e com ela Dália, sorridente, trazendo um novo aparelho nas mãos. Ansioso por uma confirmação dela, ele foi despejando:
– Tive uma experiência fantástica durante a noite. Saí do corpo. Descobri que o espírito ou a alma existe. Ou seja, a morte não é o fim.
Dália, porém, foi fria.
– O simples fato de ter se visto de fora do corpo não deve levá-lo a conclusões tão elevadas. E se este olho que via de fora for apenas uma projeção do seu próprio corpo? Quem lhe garante que com a morte do corpo esta projeção continuará?
Enquanto Lúcio buscava argumentos para refutá-la, Dália mudou o rumo do encontro.
– Trouxe este aparelho pra trabalhar em seu solo.
– Mas antes vai explicar direitinho, não vai?
– Seguinte: para o início do Grande Jogo foram lacrados 24 centros de controle anunnaki espalhados por todos os continentes. Alguns foram reencontrados depois, mas tinham sido saqueados. Muitos ainda permaneceram desaparecidos. Nos últimos cinquenta anos minha principal tarefa tem sido encontrar esses centros.
– Sabe onde podem estar?
– São doze no hemisfério norte e doze no sul, na linha dos trópicos. Estou buscando os centros do Trópico de Capricórnio.
– Só tem isso como orientação? O trópico é imenso. Já encontrou algum desses centros antes?
– Encontrei dois que também foram pilhados, não se sabe quando. Minha esperança é encontrar um aqui em suas terras.
– Aqui? Onde?
– Embaixo da sua casa.
– Está brincando?!
– Não. Há muitos indícios.
– Caramba! E que importância tem esses centros agora?
– Podem conter coisas preciosas, armas que são até impossíveis de descrever numa linguagem humana, aparelhos de comunicação que podem alcançar Nibiru e estabelecer contato, estudos de previsões avançadas para traçar planos e muitas coisas mais. Onde paramos?
– O quê?
– A História Oculta.
– Mas há tanta coisa que eu queria saber…
– Depois.
– Paramos no Dilúvio Universal.
História Oculta 6
Depois de muitas negociações, o Conselho dos Doze concordou em restaurar a colonização da Terra e a extração do ouro usando os sobreviventes do dilúvio. Enlil foi severamente admoestado pelo pai Anu e foi obrigado a mandar fazer obras de drenagem e retenção de águas para tornar a Mesopotâmia novamente habitável.
Foi necessário recriar geneticamente quase todos os animais domésticos.
A humanidade renasceu. Todas as principais cidades foram reconstruídas de acordo com os projetos originais, no mesmo lugar, sobre as ruínas das cidades destruídas. Houve uma mudança considerável – o poder foi desta vez redistribuído entre os três irmãos: Enlil, Ea e a deusa Sud, meia-irmã dos dois.
Enlil continuou com o comando geral do Oriente Médio e transferiu o espaço-porto para a península do Sinai. Instalou no monte Moriá, lugar que hoje se chama Jerusalém, um novo centro de controle das operações Céus-Terra. Essa região foi mantida durante muitos milênios como área sagrada dos anunnaki. A palavra sagrado significa tudo o que é de uso ou propriedade exclusiva dos anunnaki.
Entre os vales do Tigre e do Eufrates Sud fez ressurgir a Suméria, predecessora de todas as civilizações hoje conhecidas.
Sob o comando de Ea e sua descendência, a civilização egípcia floresceu. As grandes pirâmides não foram construídas para sepultar faraós, como se ensina nas escolas. Construíram pirâmides e esfinges com fins estratégicos para sinalização, aterrissagens e subidas de foguetes, e também para a proteção de armas nucleares e instrumentos de comando à distância.
Descendentes de Ea vieram para o continente americano e recriaram as civilizações dos Andes e do México.
Anu veio novamente à Terra para estar com uma neta com quem mantinha um caso amoroso. Para agradá-la, entregou-lhe o poder sobre o vale do Indo. Seu nome era Inanna, mais conhecida como Ishtar, que ocupou o lugar de Sud no Panteão dos Doze. Graças a ela nasceram as antigas civilizações orientais, e sua história repleta de casos amorosos com humanos está narrada nos antigos documentos do Hinduísmo.
Não é a toa que as civilizações orientais são bem mais femininas que as ocidentais…
– Anu era amante da neta Ishtar? – interrompeu Lúcio.
– Pode soar estranho nos dias de hoje que um homem seja amante de sua neta. Acontece que o incesto é um fenômeno inerente à natureza. Basta observar os animais.
– Mas os anunnaki não nascem defeituosos quando são gerados por irmãos?
– Não se esqueça que o incesto, assim como produz debilóides, pode também dar vida a grandes gênios. Já o estupro é muito condenado entre os anunnaki. Mesmo o grande Enlil uma vez foi punido severamente por estuprar uma donzela na beira de um rio e teve que desposá-la. Mais tarde descobriu-se que tinha sido uma armação da mãe da moça.
– Não acredito que o grande Enlil caiu no velho golpe da donzela indefesa!
– Pra você ver que não somos superiores.
– Mas não estupram.
– Não é bem assim. Se for para fim de preservação da estirpe e do sangue, o estupro é tolerado. A intolerância nibiruana quanto ao estupro deixou sua marca entre os homens. Vê-se claramente ainda hoje nas cadeias, entre prisioneiros comuns. Um estuprador é o tipo de criminoso que mais sofre o castigo de seus colegas de prisão. Por quê? Eles mesmos não sabem.
A história deste planeta é protagonizada por uma só família cujo patriarca é Anu. Seus descendentes formam o Panteão dos Doze que governa a Terra.
Mas a família real está longe de ser unida. Lutando por cada pedaço de terra, cidade ou império, irmão contra irmão, filho contra pai, transformaram este planeta num campo de batalha. O pêndulo do poder ora oscilava para o lado de Enlil ora para o de Ea. Tampouco havia lealdade ao clã original. Passavam de um lado ao outro segundo interesses pessoais. Mas a hierarquia hereditária sempre se manteve no poder.
Durante o terceiro milênio antes de Cristo, a deusa Ishtar conseguiu o poder hegemônico da Terra através de seu poder de sedução. Foi o único período em que uma deusa dominou, vindo daí inúmeros mitos e lendas. Depois ela abdicou, pressionada pelo Panteão e pelo avô Anu.
Ea e Enlil tiveram muitos filhos.
Na descendência de Ea, maior proeminência teve Marduk, o primogênito, conhecido no Egito como Ra. Seu poderio foi tão grande na Babilônia que muitos chamavam o planeta Nibiru de Marduk.
Ninurta é o herdeiro de Enlil.
O número doze é a marca do sistema solar. O Panteão dos Doze é um modelo que se repetiu na Terra em todas as principais mitologias. Em todas elas os deuses são os mesmos, com a mesma história e feitos, mas com nomes derivados, apropriados a cada língua. Até o candomblé reverencia um panteão de doze “grandes espíritos”, e o cristianismo venera doze apóstolos.
Assim, Ea era Enki na Suméria, Ptah no Egito, Vivashvat na Índia, Posseidon na Grécia, Netuno em Roma…
Enlil era Baal na Suméria, Indra na Índia, Zeus na Grécia, Júpiter em Roma, Javé ou Jeová em Israel…
Três mil anos antes de Cristo a monarquia humana foi introduzida na Terra. Os deuses, desinteressados dos problemas humanos, nomearam reis terráqueos para governar suas nações. Os primeiros reis eram semideuses. Daí mais tarde os reis se proclamarem filhos de Deus.
Na mesma época foi criado o sacerdócio, também para distanciar deuses e homens. Os anunnaki ficavam cada vez menos visíveis e os sacerdotes tinham a função de ponte, de ligação entre eles e o povo, e também a função de desenvolver a ciência entre os homens. Ciência e religião andavam juntas.
Criaram os oráculos, organismos políticos e religiosos através dos quais levavam, traziam e peneiravam informações. Com o tempo, para afirmar cada vez mais o poder de seus senhores, uma forte mistificação foi introduzida pelos sacerdotes, transformando os anunnaki em seres perfeitos, os criadores do universo, que vigiavam cada humano à distância, 24 horas por dia.
Dentro ou fora dos templos, os oráculos eram pontos de comunicação à distância. O povo podia consultar astrólogos para previsões, assim como a família real o fazia, sempre ouvindo os conselhos dos astros antes de decisões importantes.
Os homens não passavam de joguetes levados à batalha em incontáveis guerras de deuses em disputa por territórios, prestígio e poder. Destacaram-se nesse período as Guerras das Pirâmides e a Guerra do Sinai, onde foram usadas armas nucleares que varreram Sodoma, Gomorra e toda a Suméria.
Os templos dos deuses nada tinham a ver com religião. Eram fortes militares onde guardavam suas armas e aparelhos de comunicação, sendo assim locais muito valiosos. Por isso, quando Nippur foi atacada e o Templo de Enlil destruído pelas forças de Marduk – filho de Ea –, tal ato iria detonar o mais grave desastre intencional da era pré-cristã.
Quando soube do ataque a seu templo, Enlil partiu para Nippur furioso. Assim dizem as escrituras:
“Ele emitia um brilho de raios,
e desceu dos céus ladeado por deuses batedores
vestidos de ‘esplendor’.
Ao chegar, fez o lugar sagrado se sacudir.”
Encontrando seu filho Ninurta, Enlil quis saber quem fora o autor da invasão. Ninurta respondeu de imediato:
“Marduk é o profanador”.
Enlil teve mais um de seus famosos ataques de cólera pelos quais ficou conhecido como “o lançador de raios” e quis novamente destruir a humanidade.
Reuniu o Panteão, que temporariamente se transformou num conselho de guerra, e conseguiu a autorização de Anu para usar a arma máxima.
No livro bíblico Deuteronômio, a causa da ira de Deus contra Sodoma e Gomorra era:
“terem abandonado a aliança com Javé (Enlil)
e ido servir outros deuses…”
O Panteão autorizou o uso das bombas apenas para alvos bem localizados: destruir o espaço-porto do Sinai antes que fosse tomado pelas forças inimigas e exterminar as cidades que “adoravam” Marduk. Houve tempo para que todos os deuses e seus humanos queridos fossem avisados e deixassem a região. Os grandes deuses subiram para a “cúpula dos Céus” – estação espacial.
“Aquelas sete armas na montanha habitam.
Elas moram numa cavidade dentro da terra.
Dali, com um brilho elas se arremeterão
da Terra para o Céu, vestidas de terror.
O herói dirigiu seu curso
para o Mais Supremo dos Montes – o Sinai.
As terríveis sete armas, sem paralelo,
flutuavam atrás dele.
Ao mais supremo dos montes o herói chegou:
Ele ergueu a mão, o monte foi esmagado.
Então seguiu a Estrada do Rei
Entrou na Mesopotâmia, com as cidades acabou,
transformando-as em desolação.
Nas montanhas causou fome, pois seus animais matou.
Ele cavou o mar [Morto], sua inteireza dividiu.
Aquilo que mora nele fez definhar.
Como se usasse fogo, queimou os animais,
os grãos transformou em poeira.
Fez chover fogo e pedra sobre os adversários.”
Assim, em 2024 a.C., marcando o início de mais uma beligerante Era de Áries, o espaço-porto do Sinai foi eliminado da terceira dimensão por bombas atômicas.
Talvez por um erro de previsão, a radiação jogada sobre as cidades marduquianas foi levada pelo vento para o nordeste e toda a Mesopotâmia foi calcinada, desaparecendo do mapa. A cicatriz no solo é tão extensa que só recentemente pôde ser percebida, captada por fotos de satélites.
Nas águas tudo foi exterminado e o mar interior teve suas dimensões ampliadas, passando a ser conhecido como Mar Morto. Ainda hoje, as águas de algumas fontes ao redor do Mar Morto apresentam resquícios daquela radiação e causam graves moléstias.
Foi quando apareceu o personagem Abraão, patriarca de todas as religiões monoteístas – que adoram o Deus único. Abraão nasceu em Nippur e era um cidadão de prestígio na famosa cidade de Ur, então capital do império. Sua família afirmava que eram semitas. Semita vem de Sem, que vem de shem, que significa foguete. Os semitas reivindicavam serem descendentes do “povo dos foguetes” ou anunnaki.
O pai de Abraão era um sacerdote do oráculo encarregado de se aproximar da “Pedra que Sussurra”, ouvir as instruções dos deuses e transmiti-las aos nobres leigos.
Abraão pertencia à casta dos sacerdotes, mas também era um hábil diplomata e militar. Consta que era um homem riquíssimo que caiu nas graças de Enlil e Ninurta quando valentemente comandou exércitos na defesa do espaço-porto do Sinai e venceu os reis de Sodoma, Gomorra, Seboim e Bela, cidades que serviam a Marduk.
Enlil fez um pacto com Abraão.
A longa descendência de Abraão seria privilegiada se em troca ele o ajudasse a introduzir o monoteísmo no planeta. Por essa razão, os israelitas até hoje afirmam ser o povo escolhido.
Abraão foi avisado para partir para o Egito antes das bombas serem detonadas e não voltar até que a radiação se dissipasse.
Abraão deixou Ur levando consigo um presente de Enlil, a Arca da Aliança, um artefato nuclear que só aparece na Bíblia a partir de Moisés. Consta que o povo de Javé deu sete voltas carregando a arca ao redor das muralhas de Jericó – a mais velha cidade do mundo pós-diluviano, datada de 8.500 a.C. – e suas grossas muralhas ruíram.
Muito já se falou a respeito dessa arca que matava quem dela se aproximasse sem os devidos cuidados. Somente o alto sacerdote israelita podia…
“entrar no Santo dos Santos (centro de controle),
aproximar-se do Dvir (falador)
e ouvir a voz de Deus vinda da cobertura
que ficava sobre a Arca da Aliança,
entre os dois querubins”.
“Javé disse:
Ali virei a ti e do meio dos dois querubins
que estão sobre a Arca do Testemunho
falarei contigo acerca de tudo
o que te ordenar para os filhos de Israel.”
Êxodo – Capítulo 25 – Versículo 22
A Arca da Aliança não era apenas um telefone em linha direta com Javé/Enlil, era um artefato nuclear.
Para introduzir o monoteísmo junto ao povo hebreu, Abraão usou a seguinte tática: durante algum tempo ficou proibido mencionar nomes de deuses. Referiam-se a eles como “os inomináveis”.
Quando o povo israelita já tinha se desligado dos nomes antigos, um deus único e todo poderoso foi nomeado – Javé, senhor dos exércitos.
E foi assim que o povo israelita recebeu o bastão que passou das mãos de Abraão a seu filho Isaac, e dele ao seu filho Jacó que teve seu nome mudado para Isra-El.
Enlil ou Javé tornou-se Zeus na Grécia e até os dias de hoje é chamado de Deus pela civilização ocidental.
– Minha narrativa termina aqui – ela disse.
Lúcio sentiu um vazio. Queria continuar ouvindo, principalmente agora que estava mais convicto da veracidade da História Oculta. Queria mais.
– E hoje esses deuses ainda existem?
– Se os anunnaki estavam aqui em 2024 a.C. há pouco mais de um shar, quando o Conselho dos Doze autorizou o uso de bombas atômicas, porque não estariam hoje?
– Está por aqui, toda essa gente?
Não. Quase todos se foram quando começou o Grande Jogo.
– Que é isso?
– Os efeitos devastadores das bombas atômicas deixaram o Conselho dos Doze preocupado. De uma hora pra outra o trabalho de milênios poderia novamente se perder. Os deuses competidores possuíam uma ética muito egocêntrica e suas brincadeiras de guerra poderiam exterminar a vida na Terra definitivamente. Nas batalhas, seguiam à frente dos pelotões de humanos em seus carros voadores e suas armas devastadoras. Mas no século IV a.C. surgiu na Macedônia um semideus que mudaria a historia – Alexandre Magno. Sem o auxílio dos deuses, sem artefatos nibiruanos, sem armas nucleares, aos 25 anos ele já tinha conquistado todo o mundo dito civilizado. Desde então, nunca mais os deuses participaram diretamente das batalhas entre humanos.
– E esse Grande Jogo?
– Anu criou uma nova diversão – o Grande Jogo.
– Uma diversão?
– A proposta de Anu foi a seguinte: os nibiruanos deixariam os homens seguirem seu próprio caminho sem interferência e fariam apostas no que iria dar, no destino que a humanidade tomaria. Para que o jogo se tornasse mais interessante, Enlil propôs que se formassem times de anunnaki que poderiam interferir no andamento do jogo. Anu aceitou a proposta e sentenciou que cada time deixaria na Terra seiscentos atletas anunnaki. Mas os atletas seriam despojados de todo e qualquer artefato, inclusive de suas vestimentas. Podiam intervir na história da humanidade em função dos objetivos de cada time, mas sem apoios tecnológicos, contando apenas com sua superioridade física e psíquica. O Grande Jogo é isso: pelotões de anunnaki agindo secretamente e iniciando com forças equivalentes – seiscentos deuses para cada time. O Jogo só termina no próximo retorno de Nibiru.
– Não entendi. Qual é o objetivo do jogo afinal? Que tipo de apostas fizeram?
– Nosso mundo sempre foi dominado basicamente por duas forças centradas em Enlil e Ea. São os dois times principais. O terceiro time é comandado por Ishtar. Havia outros times de pouca influência que já desapareceram.
– E qual a diferença entre os times?
– Enlil apostou que a humanidade se destruiria antes do próximo regresso de Nibiru. Ea, que confiava no instinto de sobrevivência e na inteligência de suas criaturas, apostou que os humanos presenciariam mais uma vez a volta de Nibiru em franco desenvolvimento. Ishtar apostou que as mulheres dominariam o planeta antes do fim do jogo.
– Que beleza! Como se fôssemos animais de corrida! – reclamou Lúcio. – Então, em última instância, o pelotão do Enlil luta para destruir a humanidade e os outros para preservar?
– Exatamente. Mas seiscentos jogadores para cada time foi muito pouco. Morreram jogadores demais. Não somos imortais.
– Não são imortais, mas são muito mais evoluídos, vivem mais e dispõem de tecnologia avançada…
– Não é bem assim, Lúcio. Você não prestou atenção a um detalhe do que eu disse. Os jogadores foram deixados literalmente nus no início do Grande Jogo. Não nos restou nenhum artefato tecnológico, nem ouro, nem remédios. Tivemos que lutar pela sobrevivência em pé de igualdade com os humanos.
– Mas não ficaram técnicos, cientistas?
– Não. A decisão de ficar foi voluntária e só mesmo os guerreiros, os de tendência militar e esportiva se dispuseram a ficar na Terra. Tive que passar séculos num mesmo continente. Faz pouco tempo que viajar se tornou uma coisa fácil e rápida. Levamos séculos para redescobrir coisas simples como a eletricidade.
– Esse jogo só termina quando Nibiru regressar?
– O Conselho dos Doze pode mudar as regras a qualquer momento que julgar conveniente, seja por decisão própria ou para satisfazer alguma jogada política interplanetária. Até agora acho que as regras não mudaram.
– Acha? Então não sabe?
– Não temos contato com Nibiru desde o início do jogo.
Só então Lúcio começou a perceber melhor a situação dos deuses. Estavam no mesmo pé de igualdade que os humanos.
– Nessa guerra, nem precisa me dizer que você está do lado de Ea.
– O demônio que nos criou – ela brincou. – Já reparou que a cultura ocidental usa o tridente, símbolo de Posseidon, que é o nome grego de Ea, para indicar o demônio? Reparou que a serpente, embora inocente, é o animal mais temido do planeta? A serpente no paraíso, que nos deu o “conhecimento”, era Ea.
– Não tinha pensado nisso. Mas observei que quando você fala, sempre defende um e ataca o outro, tendenciosamente.
– Fazer o quê? Em toda a História Oculta Ea aparece claramente como protagonista e benfeitor da humanidade e Enlil aparece como disciplinador e antagonista. Enlil já tentou eliminar vocês pelo menos duas vezes, com o dilúvio e com as bombas de Sodoma.
– Mesmo assim sua história fica tendenciosa. Pinta um como bandido e o outro como mocinho.
– Antes de tudo, devo esclarecer que muitas vezes quando cito que Ea ou Enlil fizeram isso ou aquilo estou me referindo às suas hostes e não necessariamente às pessoas deles. Para a baixa compreensão intelectual das massas, o time do Enlil divulga que são do Bem e nós do Mal. Não desejo que as pessoas pensem o contrário: que somos nós o Bem e eles o Mal. Bobagem. Não existe o Bem e o Mal. Antigamente, todas as pessoas eram súditas de algum deus. Os outros deuses eram inimigos ou “demônios” que matavam, destruíam e se apossavam das terras na luta entre os deuses. Ser um deus ou demônio dependia do povo que os adorava ou repelia. O mal real é o condicionamento. O bem real é a criatividade.
– Condicionamento?
– Tudo o que o homem pensa e faz é fruto de uma programação astrológica somada a uma autoprogramação socialmente estimulada. Somos condicionados a obedecer, a trabalhar, a estudar, a valorizar certas coisas e não outras, a gostar disso ou daquilo, a ter uma preferência sexual dentro dos padrões sociais da época, agir sempre da mesma forma diante de desafios parecidos, evitar o desconhecido… Isto é o mal que nos impede de desenvolver nossas capacidades individuais. A criatividade é a libertação da programação.
– Desde que comecei a ouvir a História Oculta desenvolvi uma forte rejeição a Enlil.
– Talvez a natureza de Ea seja mais próxima da sua. Entenda que são forças em contínuo confronto. Cada lado tem sua função. Enlil não é mau. Quando não se sente pressionado, ele é expansivo, alegre, entusiasmado, otimista. Adora filosofar e pode ser extremamente generoso, sobretudo com quem está do seu lado.
– Mas isso não ameniza o fato dele querer nos destruir. É um perverso!
Encerrando o assunto e ligando o aparelho que trouxera, pouco maior que uma lata de cerveja, Dália caminhou pela casa, enquanto Lúcio permaneceu observando.
– Tem certeza de que não há mesmo um porão nesta casa, meu querido?
– Não, Dália, não há. Acho que nunca houve.
– Meu aparelho indica espaços vazios em baixo do piso. Devo confessar uma coisa: o estilo de sua casa foi o que me chamou a atenção e me fez empreender essa busca e entrar em contato com você. Por acaso eu vi uma reportagem sobre você numa revista. As fotos eram daqui, de sua casa com esse estilo pré-diluviano. Foi aí que tudo começou. Vi a casa na reportagem e achei que poderia ser um sinal indicando a presença de um centro anunnaki. Pesquisei você e me apresentei naquela manhã, depauperada daquele jeito. Algum de seus ancestrais, o que construiu a casa, devia ser alguém muito ligado à cultura nibiruana.
Lúcio sentiu um arrepio na nuca. Imediatamente lembrou-se do sonho em que sua mãe copulava com o anjo. Aquilo poderia significar que ele tinha no sangue uma porcentagem “divina”?
Lendo os pensamentos dele, Dália explicou: – Todos os humanos são de certo modo semideuses. São produtos do cruzamento entre um deus e um animal terrestre. Mas, genericamente, chamamos de semideuses os filhos de humanos com anunnaki, seres com três quartos de DNA alienígena. Como os semideuses e depois seus filhos também geraram descendentes com humanos, a gama de variações de porcentagens de sangue nibiruano é muito grande. Muitos humanos têm um DNA muito próximo dos anunnaki, por isso tornam-se figuras de destaque. É provável que você tenha mais do que 50% dos nossos componentes. É mais sensitivo e perceptivo que a média, tem a mente mais aberta e a sexualidade também. Agora, se me der licença, vou examinar melhor esse piso.
– E a História Oculta, como entra nisso?
– Um ardil útil, uma chance de você ter um conteúdo significativo para o seu romance.
– Um ardil?
– Logo que você começou a levar a História Oculta mais a sério, pensou que talvez ela fosse um bom conteúdo básico para o seu tão sonhado romance.
– É verdade, cheguei a pensar nisso. Mas essa história tem pouco mais que uma dúzia de páginas.
– É importante que ela seja sucinta e objetiva como eu a descrevi. É preciso facilitar a leitura para um público maior.
– E porque está preocupada com um público maior se foi apenas um ardil?
– Não seja bobo. Essa história é importantíssima. Cabe a você abandonar seu condicionamento literário e criar uma forma onde tudo se encaixe com presteza. Ajudarei na divulgação.
Ele não disse mais nada. Baixou a cabeça e ficou olhando o piso da residência. Era de grossas toras de madeira que alcançavam as paredes de lado a lado, todos do mesmo tamanho, perfeitamente casadas e ajustadas.
– Belo piso – ela comentou – Agora vamos ao outro tópico do projeto. Encontrei a entrada de uma gruta perto da trilha que atravessa sua floresta. Pode ser a entrada de um túnel. Lúcio, preciso que me ajude a remover as pedras que estão obstruindo a entrada.
– Quando?
– Amanhã cedo.
CAPÍTULO ONZE
Pela manhã Dália não apareceu, coisa que deixou Lúcio ainda mais tenso. A queda de um talher foi o bastante para deixá-lo raivoso. Excesso de energia? Era todo ouvidos, esperando captar um ruído que denunciasse a chegada dela, mas foi um barulho de motor que tomou conta do espaço – Adônis.
– Cheguei em boa hora? – foi perguntando, simpático.
– Pra você qualquer hora é boa – respondeu formalmente, sem conseguir ocultar a raiva e a decepção. Era Dália quem ele esperava.
– Parece raivoso. Minha chegada o desapontou? Não sou bem-vindo, lhe causo algum temor?
– Temor não. Sinto certa estranheza na sua presença, assim como diante de Dália. Uma espécie de embriaguez lúcida, uma ânsia, como se fosse explodir.
– Voltou a vê-la? Fez a proposta do encontro?
– Sim. Dália ficou de me dar uma resposta.
– Já estava com saudade de você. Posso lhe dar um abraço, Lúcio?
Sem que tivesse tempo de se esquivar, Lúcio sentiu o corpo quente do major apertando seu peito, seu corpo relaxando, sua raiva transmutando-se em atração… E o major roubou-lhe um beijo. De início, Lúcio permaneceu inerte, entre assustado e surpreso, mas os lábios do major eram quentes, macios, irresistíveis. Porém, quando correspondeu ao beijo, Lúcio levou um choque forte o suficiente para desacordá-lo.
Voltou a si na manhã seguinte, deitado em sua cama sem roupas. Ao seu lado, também nu, dormia outro homem, um estranho.
Lúcio saltou da cama surpreso e por um tempo ficou olhando o homem dormindo, o corpo exposto. A pele branca como o mais puro mármore deixava ver uma rede subcutânea de veias azuladas. Os cabelos eram longos e levemente tingidos de azul, o perfil era grego e os lábios vermelhos pareciam ter bebido sangue.
Vestiu-se às pressas, deixou o quarto e viu que estava prestes a amanhecer. Buscou pelo relógio e constatou que ficara desacordado por mais de 15 horas.
Como esse cara veio parar em minha cama?
Foi pra cozinha. Bebeu café, acendeu um cigarro e sua memória clareou. Lembrou-se que o choque que recebera com o beijo de Adônis era igual ao que Dália lhe dera, lembrou-se ainda do major Cruz saindo da piscina do banho turco, atlético e de cabelos azulados… Então a ficha caiu: “o estranho em minha cama deve ser o major. Ele também é um ET. Deve ser um atleta do time de Enlil. Também deve ter usado comigo a tela pura, pois a cada encontro se tornava mais belo e atraente – concluiu Lúcio.
Então Adônis apareceu na porta da cozinha envolto numa toalha de banho, cabelos azulados pendendo sobre os ombros.
– Bom dia, Lúcio. O cheiro do seu café tirou-me da cama.
Lúcio ficou pasmo diante da nova figura que agora via acordada. Nem de longe se parecia com o Adônis do dia anterior. A não ser pelo olhar e pela voz, era um completo desconhecido.
– Ficou aborrecido comigo, Lúcio?
– Não. Só estou muito surpreso e confuso. Não sei o que me aconteceu, perdi a noção das horas e você…
– Culpa minha. Acho que fui muito afoito e choquei você.
– Por que não me contou que também é um alienígena?
– Diz isso por quê?
– Sua aparência.
– Então está me vendo sem a interferência da tela pura?
– É, estou.
– Puxa, você me surpreende, Lúcio.
– E também pelo choque que recebi no beijo. Foi do mesmo tipo que recebi de Dália.
– Não se preocupe. Dormimos como dois anjinhos. Não abusei de você enquanto dormia, embora tivesse vontade.
– E por que tirou minha roupa?
– Para que relaxasse mais, ficasse mais confortável, além de me dar a oportunidade de admirar seu corpo. Acha que sou um descarado?
– E você, por que estava nu?
– Só durmo nu. É um hábito secular.
Embora não tivesse mais espaço mental para nenhum tipo de machismo, Lúcio sentiu-se bem melhor ao saber que não tinha sido uma mera vítima de estupro alienígena. Encheu uma caneca de café e passou-a ao visitante.
– Então transou com Dália?
– Não posso chamar aquilo de… Só me lembro do choque. Apaguei e não sei ainda o que ela fez comigo.
– Eu não fiz nada com você, juro.
– Você sabia que eu desejava Dália. Sente ciúme? Dália me disse que os deuses também sentem ciúmes.
– Deixe isso pra lá. Temos coisas mais importantes a conversar, por exemplo, sobre nós. Já deve ter percebido que projetou em mim um companheiro pro seu personagem rebelde.
– Personagem rebelde?
– Por isso deixou que eu o beijasse.
– Dália me explicou a tela pura. Disse que eu projetava nela minha mulher interior. Quer dizer que em você projetei outro personagem.
– As pessoas acham que têm apenas uma personalidade. O que acontece é que somos tomados por distintos personagens de acordo com a área da vida que estamos atravessando. No trabalho somos um, na família somos outro. Temos basicamente doze personagens, mais masculinos ou mais femininos, regidos pelos signos do zodíaco. Estes personagens estão claramente definidos no horóscopo natal do indivíduo. Todos os personagens ou faces convivem dentro de nós. Umas conseguem maior expressão, enquanto outras são reprimidas. O personagem rebelde é o patinho feio, rejeitado pela sociedade. Quando ele assume o comando a pessoa se torna revolucionária, disposta a confrontar a sociedade mesmo que seja apenas através do uso de roupas e cabelos exóticos. A manifestação sexual do personagem rebelde busca escapar da tradição produzindo os homo e os bissexuais, criando casamentos inter-raciais ou entre pessoas muitos diferentes. É a face que apresenta uma sexualidade flexível, uma disposição a confrontar a opinião pública, seja através do sexo, da aparência, das atitudes ou das idéias.
– Se refere à face libertária que todos temos?
– Isso. Provoca a necessidade de vivenciar uma sexualidade aberta. Quase todos reprimem duramente este personagem, mas ao longo da vida encontram uma forma de dar vida ou vazão ao patinho feio, de acordo com o momento da cultura, o momento histórico, as limitações dos pais, da família e da sociedade.
– Será? Os machões não manifestam uma sexualidade aberta – contrapôs Lúcio.
– Se o personagem rebelde não tem a oportunidade de se expressar, se torna veneno interior e cria deformações físicas e psíquicas. Porém, existem infinitas formas de extravasamento dessas tendências, desse personagem. Antes de nada, é preciso entender que a garganta dos animais é um órgão sexual. A garganta dos humanos também. Quando um pássaro macho canta, as ondas sonoras que sua garganta emite atingem os centros sexuais das fêmeas. Quando as pessoas cantam, cativam os ouvintes, despertam paixões. Conversar com um amigo ou uma amiga é um ato sexual a dois. Qualquer toque no corpo de alguém tem uma conotação sexual de atração ou rejeição.
– Qualquer?
– Os homens conversam, trocam abraços ou tapinhas, falam ao pé do ouvido, às vezes roçando os lábios no pescoço ou na orelha do amigo, principalmente quando ingerem bebidas alcoólicas. As mulheres conversam ainda mais, levam as amigas ao toalete, expõem suas intimidades, se abraçam mais longamente, se beijam… Porque as mulheres sempre têm amigas íntimas? Os homens também têm um amigo mais chegado com quem mantêm extensas relações sexuais através da conversação. Porque temos a necessidade de abraçar e até de beijar nossos amigos mais queridos? Existe coisa mais gay do que uma partida de futebol?
– Como assim?
– Milhares de jovens do mesmo sexo, vestidos com pouca roupa, constantemente se roçando, cantando, gritando, se abraçando, se esfregando e torcendo por uma equipe de homens de pernas de fora, aos quais invejam, cobiçam, amam – seus ídolos que lhes jogam as camisas suadas no fim do jogo. O felizardo que recebe tal presente passa a noite com a suada camisa no travesseiro ou em outros lugares.
– Não tinha pensado desse jeito – disse, revendo na memória as imagens das platéias de futebol.
– Confesso que desde que conheci você, Lúcio, fiquei interessado em seu corpo também. Bastou que eu me mostrasse amável e vulnerável para que você projetasse em mim um companheiro para a sua face gay. Sabe que você não é de se jogar fora?
– Agradeço – respondeu timidamente.
– Meu querido, o sexo é a melhor brincadeira que já se inventou. O objetivo é o orgasmo que, além de prazer, traz autoconhecimento. Nós, anunnaki, somos todos bissexuais. Os humanos também nascem bissexuais, mas sofrem um massacre cultural. Isso vem desde o princípio – a necessidade que os anunnaki tinham de trabalhadores reprodutores. A bissexualidade e a homossexualidade são reprimidas porque colocam em risco a estrutura social apoiada na família. Mas manter uma relação física com os humanos é uma coisa que gostamos muito. Vocês têm uma animalidade muito presente.
– Sabe que estou surpreso com suas idéias? Lembra muito as divindades do Olimpo com todos aqueles bacanais…
– Mas nós somos assim mesmo, Lúcio. Exatamente como os gregos descreviam seus deuses: caprichosos, fofoqueiros, vingativos, libidinosos, mas também poderosos, inteligentes, generosos… Fomos nós que trouxemos pra cá a cerveja, o tabaco, o vinho, a pimenta e centenas de iguarias prazerosas. Eu tive uma noite muito agradável ao seu lado.
Adônis sentou-se à mesa, serviu-se de pão com geléia e acrescentou leite ao seu café. Lúcio, entre admiração e curiosidade, viu ali a chance de obter informações de uma nova fonte.
– Também é anunnaki?
– Sim. Sou um clone.
– Clone?
– Tem preconceito?
– Acho que não, mas senti um incômodo quando mencionou.
– O preconceito vem da velha idéia de que os clones não têm alma. Grande bobagem esse negócio de alma! Os clones são mais avançados que seus originais. Nossos cientistas mexem seus pauzinhos, eliminam defeitos do original e introduzem qualidades no clone.
– Você foi feito aqui mesmo na Terra?
– Não fui feito, Lúcio. Eu nasci em Nibiru e vim pra Terra ainda bem jovem.
– Agora pode dizer toda a verdade. O que quer com Dália?
– Ela já lhe falou sobre o Grande Jogo?
– Alguma coisa. Você é do time do Enlil?
– Sou.
– Então são inimigos. Agora entendo as preocupações dela com relação a você. O Grande Jogo. Desde quando estão lutando?
– No quarto milênio antes de Cristo foi criado o calendário de Nippur, que os judeus seguem até hoje. Mas para o início do Grande Jogo foi estabelecido algo absolutamente inusitado – o “Ponto Zero”. Um ponto a partir do qual os anos crescem pra frente e pra trás. Mais tarde, este ponto ficou conhecido como Ano Domini. A história ficou dividida em duas partes, antes e depois de Cristo.
– Então o Grande Jogo começou com o nascimento de Jesus?
– Não é bem assim. Fizeram a lenda do nascimento de Jesus coincidir com o Ponto Zero para aumentar-lhe a importância. Mas essa associação só aconteceu alguns séculos depois, quando o time de Enlil decidiu incorporar o Cristianismo. Nosso time, que manipulava o Império Romano, sugeriu que se declarasse que Jesus havia nascido no dia 25 de dezembro para coincidir com a data em que se comemorava o nascimento de deuses famosos como Mitra, Osíris, Adônis e Dionisius. Assim, Jesus foi incluído no rol dos deuses mais importantes.
– Mas porque o interesse do seu time em Jesus?
– Jesus era um revolucionário radical. Rejeitou a família, a propriedade privada e a escravidão. Menosprezava o valor do trabalho, estigma primordial da humanidade. Essa inversão de valores que ele propunha não interessava ao nosso time. Durante os dois primeiros séculos do Grande Jogo tivemos que combater os cristãos, que acima de tudo eram revolucionários da oposição que ameaçava libertar Israel do domínio romano. Então, baseados no ditado “se não pode com o inimigo, alie-se a ele” resolvemos trazer os cristãos para o nosso lado. Convencemos o imperador romano Constantino a declarar que tivera uma visão e se convertera ao cristianismo – isso aconteceu em 312 d.C. Constantino unificou seus domínios sob o título de Santo Império Romano com uma religião que juntava símbolos religiosos de diversas seitas pagãs. Sabia que houve até votação no Vaticano?
– Votação pra quê?
– Pra decidir se Jesus era humano ou divino, se devia ser incluído no rol dos deuses. Nós nos apropriamos de um movimento que estava ganhando muita força. Inventamos uma nova história para Jesus. Sua morte nós copiamos da “morte” do deus Mitra, que foi enterrado num sepulcro de pedra e ressuscitou depois de três dias. O símbolo de movimento de Jesus era a figura dos dois peixes invertidos, o signo da Era de Peixes. Nós substituímos os peixes pela cruz nibiruana – criamos a crucificação. Introduzimos o número doze, a suprema marca anunnaki e inventamos um panteão humano – os doze apóstolos de Cristo.
– Difícil de acreditar – disse Lúcio, pensativo.
– Isso que estou contando não é segredo. Há documentação a respeito, basta pesquisar. Levou quatro séculos para a elaboração de uma versão do novo testamento que se tornaria oficial. Fizemos o nascimento de Jesus ser anunciado por um anjo – um anunnaki – para que se reforçasse a crença em sua divindade, pois o anúncio de um anjo ou animal sagrado estava presente nas lendas populares do nascimento de todos os semideuses paridos na Terra.
– Jesus era um semideus?
– Não sei dizer. Na época eu vivia na África e só cheguei à Roma um século depois. Já havia muita mistificação e controvérsias. Semideuses não são raros. Pela semelhança que temos com os humanos, algumas mulheres nunca souberam que tinham copulado com um deus e muitos semideuses nem tiveram consciência de sua condição. Em todo caso, criamos para Jesus uma história que fazia dele um semideus, ou um filho de Deus.
– E os milagres?
– Tudo inventado, porém verossímil, pois qualquer anunnaki faz aqueles milagres que imputamos à Jesus. Foi necessário introduzir os milagres para aproximá-lo dos deuses. Mas a maioria de seguidores de Jesus daquela época não acreditava em sua divindade. Era considerado um líder revolucionário político e místico, pois naquela época esses conceitos se confundiam. Lutava pela libertação de Israel das mãos do império romano. A bem da verdade, se o império romano não tivesse encampado o cristianismo, ele não teria durado tanto. Os cristãos não eram unidos, dividiam-se em inúmeras pequenas seitas, cada uma seguindo um evangelho diferente. Havia mais de trinta evangelhos que foram reduzidos a apenas quatro, de acordo com os interesses do império na época. Os demais foram considerados apócrifos, ou demoníacos, como os evangelhos de Tomé, Felipe, Madalena e Judas. Criamos uma história para provar que os profetas israelenses do Antigo Testamento eram autênticos emissários do Deus único – Enlil –, e que suas previsões se confirmaram através de Jesus, o cristo das profecias judaicas.
– Está dizendo que a história de Jesus contada no Novo Testamento é uma farsa?
– Se observar os Evangelhos com atenção perceberá que todos os textos sobre os atos de Jesus são apenas cumprimentos de profecias do Velho Testamento. Uma história fabricada sim! E no século 20 amornamos Jesus, que ficou bonzinho, familiar, para fornecer grandes lucros nas festas mercantilistas da Páscoa e do Natal. Aproveitamos que a Era de Peixes era propícia à mistificação e usamos o cristianismo como instrumento de alienação da humanidade. A Bíblia vem sendo modificada através dos séculos em função dos interesses dos papas – embora os crentes continuem acreditando que é a palavra de Deus.
– Não acredito que você participou disso! – exclamou Lúcio, perplexo diante da frieza com que Adônis apresentava sua versão do cristianismo.
– Sou um atleta militar e defendo os objetivos finais do meu time no Grande Jogo. Minha moral é muito flexível. Participei de toda a história e não me arrependo de nada do que já fiz. Lênin tinha razão. A religião é mesmo o ópio do povo. Nós apenas nos aproveitamos disso.
Adônis fez uma pausa, serviu-se de mais café e saiu pra varanda. Ficaram um bom tempo ouvindo a cantoria das cigarras até que Adônis resolveu retomar o tema.
– Até a metade do século 20, o time de Ea estava vencendo o jogo. A natureza não era devastada e o homem não dominava o planeta. Depois que ajudamos os americanos a criar e a lançar as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, o jogo se inverteu. Dali em diante, o time de Enlil assumiu o controle sobre os governos das grandes nações e sobre as indústrias farmacêutica e bélica. Assim revertemos todo o jogo. Além disso, implantamos na base das culturas o que é chamado esotericamente de Tríptico de Enlil. Os três pilares da civilização moderna: Deus, família e propriedade privada.
– Não entendo: como esse tríptico beneficia seu time?
– A crença num Deus que tudo pode e que tudo vê mantém o homem num estágio emocional infantil, medroso, sentindo-se diuturnamente observado, sem forças para tomar a vida em suas próprias mãos e livrar-se dos preconceitos, sempre dependente e à espera de um milagre, da salvação ou da vida eterna que lhe será dada em troca de sua obediência aos valores e à moral oficiais. Fracos, os homens tornam-se presas fáceis para todo tipo de mistificação. A família restringe a liberdade pessoal e a consciência individual, alonga a vida inutilmente e garante a reprodução acelerada da espécie, que se alastra como uma praga, desequilibrando a ecologia. A propriedade privada incentiva o abuso do solo, o acúmulo de riqueza por poucos e de miséria por muitos, o que também afeta a ecologia, acelera a destruição da crosta do planeta e de toda vida que nele existe.
Lúcio permaneceu em silêncio, digerindo as palavras que ouvira. O cristianismo tinha marcado sua infância e ainda estava enraizado em seus valores e em sua visão do funcionamento do universo, com um Deus criando e dirigindo tudo com relativa justiça. Adônis insistiu no assunto.
– Os homens se satisfazem ao pensar que foram criados à imagem e semelhança de Deus. Assim, a Deus puderam ser atribuídas qualidades humanas. Deus ouve, protege, castiga, recompensa… Com ele se pode falar, pedir, prometer, implorar…
Lúcio via esgotarem-se os argumentos que sua mente podia produzir para defender suas antigas crenças. Decidiu deixar o assunto de lado e retornou ao momento presente.
– Ainda não me disse o que quer com Dália. Por que a persegue?
– Quero uma reconciliação. Faz muitas décadas que os nossos times não entram em contato.
– Tenho uma intuição de que você a ama?
– Tivemos um caso, milênios atrás. Geramos uma criança. Enquanto nosso filho viveu nos encontrávamos regularmente, mas como escolhemos times diferentes, nos tornamos inimigos.
– Porque escolheu o time do Enlil? Porque apostou na destruição da humanidade? O que tem contra os humanos?
– Nada contra os humanos. No papel de atleta de um jogo, achei que a vitória seria mais fácil apostando na incapacidade dos humanos. Você precisa entender que a lei de sobrevivência na Terra é que um come o outro. Se matarem bilhões de pessoas ou de formigas, eticamente dá no mesmo.
– Mas extinguir a humanidade é outra coisa.
– Do ponto de vista da humanidade sim, mas para o universo é algo insignificante. O homem não tem a importância que pensa ter. É uma espécie híbrida que não deu muito certo. É animal e deus ao mesmo tempo. Se fosse apenas animal, sentiria a dor, mas não sofreria, não teria problemas intelectuais porque estaria integrado inteiramente na natureza. Se fosse apenas deus não viveria ilusões baratas e compreenderia que a realidade é criada por seus próprios cérebros. Muitos consideram que a humanidade é uma espécie perigosa demais para o futuro do universo. E depois, se a humanidade acabar quando você já estiver morto, que diferença faz?
Lúcio ficou perplexo diante das afirmativas do alienígena. A clareza encerrava aquele assunto.
– Não respondeu à minha outra pergunta, Adônis. Ainda ama Dália?
– O que os humanos chamam de amor chamamos de apego. Eu não tenho nenhum apego a ela. Só quero encontrá-la, levantar a bandeira da paz.
– Interessante ver que ela pensa exatamente o contrário. Pensa que você quer matá-la.
– Que pena! Sabe quando ela voltará a procurá-lo?
– Acho que virá assim que perceber que você se foi.
Adônis refletiu por alguns segundos e resolveu despedir-se.
– Quanto mais cedo eu me for, mais cedo ela aparece. Explique tudo a ela. Marque um encontro. Aperte o grip.
Até o carro, Lúcio acompanhou o major, que lhe deu outro abraço apertado, sensual, e se foi.
CAPÍTULO DOZE
Lúcio encheu uma caneca de café, sentou-se na borda do piso da varanda, tirou as sandálias e pousou os pés na terra fria. Olhou o horizonte querendo ver um clarão rápido e sutil acima do arvoredo. Aqueles últimos dias tinham transformado sua vida. Primeiro achou que a presença de Dália era responsável por tudo. Depois percebeu que Adônis exercia uma influência parecida, talvez oposta. Sentia-se mais vivo, com os nervos à flor da pele. Seus pensamentos fluíam com maior rapidez e clareza. No entanto, percebia que o processo ainda não terminara, que ainda caminhava na beira de um abismo. Foi quando viu Dália surgindo da floresta.
– Então o major passou a noite com você? – ela foi perguntando, logo que se aproximou.
– Achei que tínhamos combinado que você viria ontem, mocinha.
– Não mude de assunto. Vi o carro dele e fiquei na moita, esperando.
– Teria sido melhor se tivesse entrado enquanto ele ainda estava aqui.
– Que é? Está querendo que ele me apanhe?
– Ele me disse, praticamente jurou que não quer lhe fazer mal algum.
– O que ele quer então?
– Reconciliação.
– Sei… Conheço essa gente!
– Conhece mesmo. O major Cruz é Adônis, um anunnaki, seu ex-amante.
– Então ele se revelou – ela disse, sem demonstrar surpresa. – Devo admitir que já sabia que era alguém do time de Enlil que estava me perseguindo. Desconfiava que pudesse ser Adônis, mas não tinha certeza. Faz muito tempo que não nos vemos. Ele já me perseguiu em outras épocas… Então, agora você e ele estão íntimos, trocam confidências, dormem juntos…
– Ciúmes?
– De certo modo. Tenho medo de que ele possa prejudicá-lo.
– Ele não quer prejudicar ninguém. Confie na minha intuição.
– Está bem, Lúcio. Vou confiar na sua intuição.
– Em nosso último encontro aconteceu uma coisa importante, Dália. Consegui ver Adônis sem a tela pura.
– Sério? Isso é muito bom. É sinal de que sua capacidade mental está se ampliando.
– E por que ainda não vejo você como é, sem projeções?
– Adônis é muito jovem. Seus poderes são limitados. E agora vamos deixar esse papo de lado e trabalhar. Deixei as ferramentas na entrada da gruta e vim lhe buscar. Hoje temos que achar um centro anunnaki! – ela exclamou, sentindo-se vitoriosa de antemão, confiante nas indicações que seus aparelhos haviam extraído do solo.
Partiram montanha abaixo penetrando a floresta. Pouco mais de cem metros distante da casa deixaram a trilha e entraram na mata até chegar diante de um amontoado de pedras.
– É aqui. Deve ser a saída de emergência do centro anunnaki – ela disse.
Era bom trabalhar ao lado dela. Lúcio sentia suas forças redobrarem. Com pedaços de pau que serviam de alavanca, uma a uma as pedras foram sendo retiradas até que a passagem fosse grande o suficiente para que entrassem. Dália trouxera duas potentes lanternas que foram varrendo de luz as paredes da gruta. Encontraram um túnel estreito, de uns dois metros de altura, muito bem escavado na rocha. Era reto, direto. Percorreram uma centena de metros e se depararam com uma pesada porta de madeira.
– E agora?
– Vamos ter de abri-la de algum jeito – ela respondeu, sempre confiante.
Meteu a mão no trinco e forçou. A porta estava destrancada. Entraram. Após rápida vasculhada com a luz das lanternas, o espaço se mostrou vazio. O teto de toras de madeira maciça fez Dália exclamar – A sua casa! Estamos embaixo da sua casa!
Tudo havia sido retirado, mas Dália não parecia decepcionada, apenas esperava dele alguma iniciativa. Lúcio persistiu na busca, investigando de perto cada palmo do piso, das paredes e do teto. Foi então que descobriu uma parede que o fez estancar.
A parede estava toda pintada com imagens, símbolos e palavras arcaicas. Enquanto olhava as figuras, sua atenção foi puxada pela imagem central – um círculo solar enlaçado por uma serpente que engolia a própria cauda. Da serpente saíam longas asas.
Muitos véus foram caindo enquanto apreciava a parede. Véus que até então o desviavam da realidade. Era como se uma lufada de vento frio percorresse os labirintos de seu cérebro e uma chuva fina desaguasse de sua memória ancestral, desfilando diante de seus olhos uma seqüência de imagens muito antigas, da História Oculta.
Aproximando-se por detrás dele, Dália explicou: – Esse desenho é um dos mais antigos símbolos do planeta Nibiru. Embaixo está escrito em sumeriano: Barco Sul 3. Era o número desse centro. Aqui estava mesmo instalado um dos centros perdidos.
Muito lentamente, senhor de um novo poder, Lúcio virou-se e então viu Dália como realmente era – mais morena, cabelos mais escuros e encaracolados, traços muito bem definidos, uma beleza egípcia.
Sorriram e se abraçaram. Depois retomaram a trilha de volta à casa, mudos, pois as palavras eram desnecessárias. Pela primeira vez Lúcio percebia que não era um indivíduo.
Quando entraram na casa, outra surpresa. Adônis os esperava com um bolo nas mãos.
– Feliz aniversário, Lúcio – ele foi dizendo, em tom festivo.
Surpresa maior foi a atitude de Dália, que nem sequer por um instante se tencionou ao ver o suposto inimigo.
– Hoje é seu aniversário e pelo brilho do seu olhar posso ver que já está pronto – continuou Adônis.
– Sim – confirmou Dália. – A visão do círculo alado na parede foi a gota de água que faltava para transbordar o copo da memória coletiva. Nosso trabalho está completo, Adônis.
Durante algum tempo Lúcio permaneceu quieto, dando tempo para que uma revolução se completasse interiormente. Os temores quanto à hostilidade que pensava existir entre Dália e Adônis se dissiparam.
– Agora podem me explicar tudo, desde o começo? – perguntou, por fim.
– Na verdade, sempre fomos do mesmo time de Ea. Agimos em conjunto. Nossa missão era despertá-lo. Você é um semideus que estava adormecido – ela disse.
– Um semideus?
– Seu pai era um anunnaki. Deixou essa casa pra sua mãe e voltou às suas lidas no Grande Jogo. Morreu assassinado por um atleta do time de Enlil faz cinco anos. Não conseguimos ressuscitá-lo.
– Espera aí, vamos devagar – pediu Lúcio. – Os semideuses precisam ser despertados?
– Para não permanecerem numa condição meramente humana – disse Adônis.
– Todo o jogo foi necessário. Para despertá-lo, decidimos aplicar fricção interior. Consiste em criar uma divisão e uma luta interior, o que gera muita energia. Um aumento súbito de energia facilita o despertar. É uma técnica psicoterapêutica muita antiga. Parte dela foi difundida entre os humanos pelo armênio George Ivanovitch Gurdjieff na primeira metade do século XX.
– Sempre fomos do mesmo time de Ea. Aparecemos como inimigos como parte da técnica. A surpresa, o inesperado abre portas, o estresse intensivo aumenta a poder da memória, o medo nos deixa alertas; a sexualidade sempre presente em nossos encontros permitiu maior troca de energias, a História Oculta reativou sua memória ancestral…
E Adônis foi justificando as armações que tinham realizado nos doze dias de encontros planejados para que Lúcio fosse gradualmente levado a uma metamorfose.
– Disse que meu pai morreu?
– Ele é quem deveria estar fazendo esse rito de passagem que fizemos com você. São regras ancestrais. Os pais devem despertar os filhos que tiverem com os humanos. Na ausência dos pais, cabe aos avós a tarefa – disse Dália, com um sorriso maternal adornando seu rosto.
– Meus avós? Vocês são meus avós?
Abraçaram-se os três, longamente, comemorando uma reunião de família. Depois Lúcio quis saber mais.
– E o Grande Jogo é verdadeiro?
– Infelizmente sim. Mas pensamos que o Grande Jogo já acabou porque os homens vão destruir a vida na Terra bem antes de Nibiru voltar. Os cientistas mais sérios do planeta estão alarmados. O índice de aceleração do aquecimento global dobrou de uma hora pra outra. As chances de a Terra escapar de um colapso total são mínimas. Sem falar na guerra nuclear que pode rebentar a qualquer momento. E depois, o atletas que sobraram são muito poucos. Nosso time conta apenas com dezoito. Com os recursos de que dispunha, Enlil devia saber que sua aposta seria vitoriosa e que os atletas anunnaki morreriam junto com os humanos. Ele dispõe dos melhores astrólogos, futurólogos e videntes do sistema. Ele devia saber que na entrada da Era de Aquarius o jogo se reverteria. E nos deixou aqui para morrer – disse Adônis, em tom de queixa.
– Mas Anu ou Ea não podem fazer nada?
– Não sabemos. Estamos a mais de dois milênios sem contato.
– E nós, o que podemos fazer?
– Tarefa inglória! Retardar a catástrofe até a chegada de Nibiru.
– Quer dizer que se Nibiru chegar pode reverter o processo de destruição?
– Tenho certeza que sim, mesmo que os deuses tenham que matar metade da população.
A resposta não foi muito animadora, mas naquela altura, ainda restava a Lúcio a esperança de ficar entre a metade poupada. Via desmoronar todo um arcabouço de imagens por ele criado desde que soubera que lidava com alienígenas. Queria conhecer seus artefatos magníficos, cruzar o espaço com seus sapatos voadores, seus discos, invisivelmente… O que percebia agora era que os deuses estavam na pior. A situação era pra lá de estranha.
– Espera aí. Vocês não têm discos voadores? Não fazem viagens espaciais? Não ficam invisíveis?
Um não duplo foi a resposta.
– Já tentei lhe explicar, Lúcio. Nós estamos numa situação semelhante à sua.
– Mas têm superpoderes?
– Além de um sistema imunológico mais eficaz e da facilidade de escapar da mente inferior, o que entre outras coisas nos dá o poder de curar doenças, prever o futuro a curto e médio prazo, mover e alterar objetos à distância e manipular a mente dos humanos, nós somos iguais aos homens.
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