Dias de chumbo e drogas
Cyrus Lobo já conhecia os efeitos que a maconha produzia, mas pelo que lhe informaram, eram leves se comparados às alterações sensoriais criadas pelo ácido lisérgico. A informação bastou pra que sua mente curiosa, faminta por desafios, quisesse fazer a experiência. Engoliu uma pílula de LSD ainda de madrugada. Disseram-lhe que o efeito alucinante alcançaria o pico pouco depois de duas horas e, assim, estaria a pleno vapor quando o Sol nascesse.
Começou com uma contração no estômago que foi aumentando de intensidade. Assustou-se, amedrontou-se, pensou na morte, não conhecia bem quem lhe vendera a droga, talvez tivessem lhe dado veneno, quê fazer, beber leite… Mas inesperadamente, como uma ejaculação, explodiu no ar um arco-íris, as contrações cessaram, a viagem começou. Ficou ali, sentado, incapaz de movimento, extasiado com o filme que sua mente projetava nas paredes, no teto, no chão. Quando o dia clareou, a luz pela vidraça ampliou a variedade de formas e tons, o Sol o puxou pra fora.
Saiu perambulando, entregue ao rumo dos pés, à distorção de imagens, à expansão do tempo… Era como se um véu se rompesse, revelando a realidade por detrás, uma realidade sem limites, impalpável, difícil de atravessar. Extasiado, chegou à Avenida da Consolação.
Embora fosse passageiro de primeira viagem, não demorou a acostumar-se com os efeitos do ácido. Já percebera que tudo que via, tinha uma boa dose de projeção da sua imaginação. Achava estar no comando, criando os acontecimentos – nas pessoas, projetava animais, nos veículos, monstros pré-históricos, fazia as sorrirem, outras que chorarem, brilhos atacando de todos os lados… No auge do caos mental, algo espantoso aconteceu: bem à sua frente, viu um fusca explodir, chamas subindo, motorista pegando fogo… Sentiu no peito o impacto, o deslocamento do ar.
Chega! – disse a si mesmo, e deu as costas à explosão, pensando que assim a faria desaparecer. Haviam lhe prevenido de que o ácido lisérgico era uma droga muito forte, mas nunca pensou que chegasse a tanto, a ponto de permitir que sua imaginação criasse uma cena tão impactante, tão real. Seria aquilo a tal da bad trip? Teve medo, medo de si mesmo, que mais poderia criar? Sua morte? Então, a paranoia instalou-se, ouvia sirenes, correu alucinadamente, fugindo do mundo. Entrou em casa e trancou-se. Alívio.
Jogou-se no sofá e fechou os olhos – as alucinações imagéticas se intensificaram. Ficou ali sem se mover por um tempo incontável. Depois, ligou o som, e passou o resto do dia ouvindo Pink Floyd e Beatles. À noite, ligou a televisão, monótona, claro, depois do que acontecera durante o dia. Adormeceu de cansaço, esquecendo o aparelho ligado. Acordou com o jornal matinal, veiculando a notícia da explosão de um fusca na Avenida da Consolação na manhã anterior.
Era 1969, o Brasil se espremia na sombra do AI5, lei que aumentava o poder da ditadura militar e intensificava a repressão. Mas ainda havia pessoas que não se amedrontavam, não hesitavam em executar atos de repúdio, certas de um dia derrubarem o inimigo. A explosão do fusca fora uma dessas tentativas. Um professor universitário carregava no carro uma bomba que pretendia explodir na porta do Citibank. Por azar, o artefato explodiu antes da hora, matando apenas o autor do frustrado ataque, e apavorando Cyrus.
Ainda mentalmente frágil pela experiência de 24 horas com o ácido lisérgico, a notícia o abalou. Então a explosão aconteceu mesmo! O noticiário informava que fora um atentado frustrado da esquerda comunista. Um frio na espinha, a paranoia retornou, quase podia sentir policiais cercando a casa. Os milicos não iriam deixar aquele atentado passar em branco…
Cyrus Lobo, estudante universitário, era militante de um partido socialista clandestino, a Ação Popular, simplesmente chamada de AP.
Passou pelo chuveiro frio e recuperou parte da lucidez. Foi direto ao prédio onde morava Igor Mattos, seu contato imediato com o comando do partido. Precisava se informar sobre a explosão, as prováveis consequências… Mas não teria coragem de contar sobre a droga, a visão da explosão, nem mesmo pra ele, seu amigo. Achava que, como todo o pessoal da esquerda, o amigo podia ser revolucionário na política, mas tinha uma mentalidade rígida, ideias fixas, conservador em questões de liberdade individual… Como é possível? Andava dividido, gostava do Vandré e do Chico Buarque com suas canções denunciantes, mas apreciava igualmente Gilberto Gil e Caetano Veloso, seu tropicalismo apartidário, sem falar na admiração que sentia pelos hippies. O que mais queria naquele momento era viajar para os Estados Unidos e participar do festival de música de Woodstock que aconteceria dali a um mês.
Estava decidido a abandonar a AP, mas como comunicar aos companheiros e amigos a decisão de abandonar aquele “barco”? Tal decisão acontecia porque o partido resolvera ingressar na luta armada. Logo estariam matando gente, não podia concordar. Nem sabem fazer bombas que esperem a hora certa de detonar! Estava se inclinando mais pro caminho hippie das flores, mas estremecia ao recordar a viagem de LSD.
Igor Mattos morava num edifício do centro da cidade, onde havia diversas repúblicas de estudantes esquerdistas. Quando Cyrus entrou no elevador, uma claustrofobia o atacou, as paredes o comprimiam, talvez uma cena de filme que guardara no inconsciente, sequela da droga subindo à tona… Subindo dois andares, e bateu. Quando a porta se abriu, susto grande – dois policiais apontavam fuzis em sua direção. Por um momento, achou que fosse outra das armações do LSD, mas baixou à realidade quando foi puxado para dentro do apartamento e jogado ao chão da sala junto a outros jovens assustados, Igor Mattos entre eles. Pela conversa dos militares entendeu que estavam prendendo todos os moradores daquele edifício porque ali também morava o tal professor que explodira com a bomba.
Todos os detidos foram levados pro quartel do Parque do Ibirapuera onde funcionava a Operação Bandeirantes, famosa pela violência no trato aos ditos subversivos. No caminho, Cyrus viveu momentos de pânico, espremido entre dois soldados, um deles com um revólver encostado em sua cabeça. Achava que poderia morrer a qualquer momento… Trânsito intrincado, bastava uma brecada mais brusca pra arma disparar e… Quando o carro parava, de fora as pessoas olhavam com pena, sabiam o fim que poderia ter quem fosse preso naqueles dias.
No quartel, foi empurrado para junto dos demais estudantes presos naquela manhã. Era uma sala de espera, passagem para a sala de interrogatórios de onde vinham gritos. Os detidos deviam permanecer em pé, encostados à parede, até serem chamados. A toda hora, entravam soldados que, de passagem, distribuíam tapas e chutes nos prisioneiros, aparentemente, por puro prazer.
Como uma amostra do que aconteceria na sala de interrogatório, para amedrontar e facilitar confissões, dois soldados trouxeram um pequeno aparelho elétrico. Escolheram um dos prisioneiros, justamente Igor Mattos. Enrolaram um fio desencapado em seu dedo mindinho e deram choques. O rapaz trepidava, se contorcia, gemia. Ainda por cima, quando terminou a sessão de choques, levou uns bofetões por ter urinado no meio da sala. Cyrus, quem sabe por empatia ou por medo de ser o próximo, também se mijou. Os dois foram obrigados a limpar o chão. As ordens eram para que fizessem tudo de mãos dadas. Foram até a área de serviço onde lhes entregaram material para a limpeza da urina derramada. Além de cúmplices na luta contra a ditadura, Igor era seu amigo. Ficar de mãos dadas com ele, entre soldados fazendo gracejos, debochando de suas virilidades, não foi nem um pouco humilhante, pelo contrário, foram momentos de conforto – as mãos do amigo transmitiam cumplicidade, não estava só.
Wikipédia:
O Ato Institucional nº 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, foi a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou até dezembro de 1978 e produziu um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados.
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