Iniciação
Tinha seis anos, quando os dias se estendiam longamente – o tempo era súdito da imaginação – uma sensação de descontinuidade. A descoberta dos nomes, dos limites, da sexualidade infantil. Lúcio tinha a impressão de ter os olhos maiores que o corpo de tão curiosos, sempre querendo descobrir o que estava por detrás das aparências. O pano de fundo emocional se agitava em constante apreensão, o temor de não se encaixar naquela família tradicional – metodistas ferrenhos – e, por isso, o cristianismo fora uma filosofia bem presente em sua infância. Gostava das histórias bíblicas que seu pai lhe contava para que dormisse. Ia à igreja toda semana, na escola dominical.
Naquele tempo, ele já se sentia a margem da sociedade, como se não pertencesse ao mundo das pessoas. Mas não é assim que se sentem todas as crianças?
Foi naquele ano que ouviu os adultos comentando que um rapaz que morava na casa vizinha estava tuberculoso e ia morrer. Com infantil humildade, em secreta oração, ele pediu diretamente a Deus que fizesse um milagre e salvasse aquela vida. Promessa nenhuma fez, porque acreditava na generosidade divina.
Não é que na semana seguinte o rapaz melhorou?! Voltou a engordar, a sair de casa, e Lúcio ficou muito orgulhoso do milagre que atribuiu à sua intervenção junto a Deus. Entretanto, algo lhe dizia que devia manter aquilo em segredo, que guardasse seu orgulho só pra si, e assim teria um pacto com o ser supremo.
Meses depois, viu o rapaz passar em sua porta. Parecia forte, talvez gordo. Uma tia que estava ao lado comentou: – Não é músculo nem gordura. É inchaço. Desta vez ele não escapa!
O rapaz faleceu um mês depois. Lúcio sentiu uma frustração terrível, uma divisão interior, talvez algo forte demais para um menino de seis anos – a primeira decepção com o grande pai. Ora se penitenciava pelo atrevimento e presunção de ter achado que poderia realizar um milagre, ora culpava o próprio Deus por sua incompetência. A partir de então começou a duvidar da bondade divina.
Completando os doze anos, seguia o caminho natural de todo menino metodista – fazer a profissão de fé – algo semelhante à primeira comunhão da igreja católica e ao bar-mitzvá dos judeus.
Houve um cursinho para decorar as respostas que teriam que dar ao “pastor” diante do altar e de centenas de “irmãos” no culto de domingo. Todos os parentes possíveis lá estavam, a igreja lotada. Com ele, uma dezena de crianças foram colocadas diante do altar.
O menino ajoelhou-se disposto a deixar suas dúvidas de lado, esquecer os desentendimentos que tivera com Deus seis anos antes. Estava emocionado, ansioso para entregar seu coração a Ele, sentir seu amor de uma vez por todas.
No entanto, algo extraordinário aconteceu.
Sem aviso prévio, dúvidas cruéis invadiram sua mente, e a cada pergunta do pastor, enquanto sua boca repetia as afirmativas decoradas, sua mente e seu coração diziam: não!
Fingiu até o fim da cerimônia e também depois, na saída, quando todos vieram cumprimentá-lo e desejar que ele jamais se afastasse do caminho da retidão. Mas em suas entranhas compreendeu que a retidão não era pra ele. A partir daquele dia começou a inventar desculpas pra não voltar à igreja e depois dos quatorze anos nunca mais voltou.
Foi seu primeiro ataque de consciência pessoal. Desde então manteve certo ceticismo em relação a tudo o que não pudesse perceber através dos cinco sentidos. Aos doze anos já duvidava da justiça divina.
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