Flor no Brejo
Pais ricos, infância mimada, juventude ilimitada – perfil do jovem que estacionava seu carrão diante do bar da esquina. Comprou cigarro e quando voltava ao veículo, um mendigo se jogou a seus pés – Muita fome, eu tenho muita fome, repetia. Irritado, o rapaz desvencilhou-se com um chute: – Vai trabalhar, vagabundo! – e voltou pro carro. Partiu em alta velocidade, fazendo os pneus cantarem, jogando fumaça nos olhos já embaçados do pedinte.
Pegou a estrada que descia a serra, era noite, neblina. Numa curva, passou direto e despencou numa íngreme descida da floresta. O carro só parou quando ficou preso entre duas árvores. Nos solavancos que levou até o veículo parar, bateu a cabeça e desmaiou. Quando voltou a si, verificou que havia sofrido apenas um pequeno corte na testa. Então quis sair, mas as portas do carro estavam travadas pelas árvores.
Meteu a mão na buzina e nada. O cabo da bateria havia se desconectado, o comando elétrico das janelas não funcionava, ninguém podia ouvi-lo. O celular… onde estaria? Não era fácil mover-se ali dentro, o carro estava muito inclinado, a frente embicada. Por fim, encontrou o objeto caído debaixo do banco. Ligou pro pai que não atendeu, pra mãe, pros irmãos, para todos que ele achava que poderiam ajudar, mas era madrugada, todos deviam estar dormindo. E então, a bateria acabou.
Dois dias se passaram. Desespero, fome, sede, defecou e urinou ali mesmo. Todos seus valores, gostos e predileções iam sendo abalados com o passar das horas, como se estivesse diante de um tribunal, julgado e despojado de suas ambições, de seus desejos, de tudo a que se agarrara até então – Daria sua fortuna por um copo d’água, por um pedaço de pão, por um banho, pelas coisas simples da vida como caminhar, olhar o céu, encontrar alguém… Apesar de todas as privações que sofria, o que mais o abalava era sua própria mente, subitamente autocrítica, que não lhe dava trégua: não devia ter bebido, não devia andar sozinho de madrugada, castigo merecido, vagabundo, preguiçoso, filhinho de papai, bem feito…
Ia entrando em pânico quando foi tomado pela imagem do mendigo que chutara. As palavras dele ribombavam nos tímpanos de sua memória: Muita fome, eu tenho muita fome. Foi então que algo novo começou a nascer dentro dele, como uma flor brotando no brejo, uma luz na escuridão. Na manhã do terceiro dia, quando foi resgatado e levado para o hospital inconsciente, ardendo em febre, repetia: Muita fome, eu tenho muita fome.
Dias depois, cercado de todos os cuidados que o dinheiro pode comprar, teve alta. Ao deixar o hospital, pediu aos pais que queria ir pra casa sozinho, dirigindo o carro do pai, para não ficar com trauma de direção. Os pais surpreenderam-se com a atitude do filho que lhes pareceu madura. Não estavam acostumados a vê-lo tomar decisões, enfrentar a realidade. Vivia mentindo, inventando desculpas para escapar de toda e qualquer responsabilidade, e agora tinha esse ato que eles consideraram de coragem, de voltar a dirigir depois do acidente – Nosso reizinho está mudado, não está, querido? – O pai balançou a cabeça, ainda incrédulo, mas entregou o carro ao filho.
Entrou no veículo, respirou fundo, ligou o motor, agarrou a direção com firmeza e partiu sem pressa. Pouco depois, estava diante daquele mesmo bar da esquina. O mendigo ainda lá estava, no chão. Deixou o carro e foi ao encontro dele. Ajoelhou-se ao lado e percebeu que o homem mal respirava. Sentiu o sofrimento dele em si mesmo e, sem pensar no que fazia, sem enojar-se com a sujeira nem como mau odor que homem exalava, carregou-o até o carro e rumou para o hospital mais próximo.
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