Eu não disse?
Era como se tivesse nascido com o dom de duvidar. Desde que entendeu palavras, olhava fundo nos olhos de quem falava, e sentia um mal estar quando havia hipocrisia ou mentira. Ciro cresceu como líder de um grupo de sete crianças, parentes quase da mesma idade, todos vizinhos que brincavam juntos. Era ele quem propunha as brincadeiras, ele quem sempre levava a culpa quando ultrapassavam limites, mas poucas vezes apanhou por engano. Os pais sabiam que tudo o que proibiam, ele incitava as crianças a transgredir.
Naquele ano, novembro, quando começaram a anunciar as festas natalinas, Ciro resolveu alertar os irmãos e primos: Papai Noel não existe, não existe… No entanto, seus argumentos eram fracos diante da carga publicitária que as televisões despejavam nas crianças e nos pais. Criançada burra! Já as havia convencido de que não havia Coelho da Páscoa, mas continuavam resistindo a qualquer novidade. Teria de provar. Dedicou-se, então, a observar o movimento dos pais. Quando saíam num horário fora do rotineiro ele ficava de olho, e via quando voltavam carregando pacotes embrulhados para presente. Faltava descobrir onde eram escondidos. Como a ceia aconteceria em sua casa, todos viriam, e como o ritual era apresentar os presentes à meia-noite, deviam ter escondido os brinquedos lá, mas onde?
Poucos dias antes da festa, viu sua mãe descer do ônibus com um embrulho grande. Segui-a de longe. Ela entrou pelo fundo e se dirigiu à edícula no quintal, deu uma olhada ao redor para certificar-se de que ninguém a via, entrou. Ciro rodeou a edícula até ver pela janela quando ela subiu numa escada, abriu o alçapão e colocou o embrulho no sótão.
Noite de Natal. Os parentes chegaram para a ceia trazendo suas crianças. Enquanto brincavam, Ciro prometeu-lhes que naquela noite provaria que o Papai Noel não existia. Ninguém ligou, doidos pra que o Papai Noel chegasse logo e lhes desse os brinquedos de seus sonhos… Mereciam ser enganados! Mas depois de tanto trabalho para desvendar o esconderijo na edícula, não ia deixar barato. Embora não merecessem, era uma questão de honra, detestava ser chamado de mentiroso e decidiu esfregar a verdade na cara delas. Inventou uma brincadeira que deveria acontecer na edícula…
Pouco tempo depois: Eu não disse?!
Os adultos interromperam a ceia e foram ver por que as crianças faziam tanta algazarra no quintal – abriam os presentes.
Ciro ficou de castigo sem ganhar seus presentes.
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