Oco do Mundo
Criado no oco do mundo, favela Paraíso, completava 18 anos naquele dia. Despertou preguiçoso, quase desistindo de ir trabalhar – É meu aniversário, pô! – porém a fome falou mais forte. Sabia que no barraco não havia nada pra comer. Tampouco tinha moedas pro café, pão e manteiga do boteco da esquina.
Tirou as ramas de mandiocas da tina d’água, escorreu, enxugou e colocou no carrinho de mão, como fazia todas as manhãs. Trancou o casebre calçando a porta com uma pedra, e desceu o morro pela trilha que conduzia à estação de trem. Lá chegando, já ia se encaminhando pro lugar de costume, embaixo do sol, quando um pensamento inusitado o fez mudar – É meu aniversário, posso sentar na sombra, embaixo da árvore, única habitante vegetal daquele pedaço cimentado.
Um belo dia de sol, estava entusiasmado com a data, agora era mesmo de maior! Desejava vender muita mandioca para fazer um agrado à mãe, comprar um vestido pra ela.
Acomodou-se na sombra, o carrinho do lado, tirou a faca e começou a descascar as ramas de mandioca pra vender.
O pessoal que frequentava o lugar o apreciava por seu contínuo sorriso, o jeito tão inocente, sempre brincavam com ele – era ligeiramente retardado, mas não daqueles inúteis. Naquele dia, alguns desejavam felicidade por mais um ano vivido, outros estranhavam ele ter mudado de lugar…
Apesar da fome, ainda não tinha vendido nada para comer, mas estava feliz, como se o mundo brilhasse pra ele. “Está demais, está bom demais”, era a frase que se repetia em sua mente cíclica.
Como se uma eclipse tirasse a luz, tudo mudou de repente. Sem mesmo ver de onde vinha, levou um soco na cabeça que o jogou ao chão. Enquanto um homem o atacava furiosamente e gritava – Esse ponto é meu! Vai apanhar pra largar de ser folgado!
Rolaram na calçada, e como estava com a faca de descascar mandioca na mão, no corpo a corpo, acabou esfaqueando o agressor. A facada foi certeira, no coração. O homem soltou um gemido e morreu em seus braços. Perplexo, inocente, não fugiu, ficou ali chorando até que a polícia chegasse e o levasse sem resistência.
Preso, soube que o sujeito que tinha matado pertencia a uma quadrilha de traficantes com manos na cadeia que certamente tentariam vingar a morte do comparsa.
Mas os carcereiros logo gostaram dele, de sua inocência, do sorriso fácil, já na primeira semana o livraram de dois ataques. Para evitar que a vingança fosse perpetrada, resolveram mantê-lo na solitária durante quase todo o tempo em que esteve preso.
A sina de sua vida sempre fora defender-se de maus tratos e agressões em decorrência de sua lentidão mental, riso abobalhado. Na solitária sentia-se mais feliz, sem ninguém para atacá-lo, era quase um paraíso. Ali podia sonhar dia e noite, dormindo ou acordado, com cenas da infância quando vivia com a mãe numa fazenda. Revia os tetas das vacas onde costumava mamar no desjejum, o pônei que a filha do patrão lhe deixava montar… Não se lembrava que a mãe já havia morrido e que estava só neste mundo.
Porém foram anos de isolamento quase total, sem que julgamento algum ocorresse. Sem estímulo, a mente embotava-se ainda mais, as frases não mais deslizavam, repetiam-se.
Um dia, o retiraram da solitária e o soltaram na rua. Não sabia mais onde obter as ramas de mandioca, nem mais conseguiria descascá-las, nem mesmo empunhar uma faca, mal podia caminhar, as juntas enrijecidas pela imobilidade na cela.
Era bela a manhã. Conseguiu arrastar-se até a estação, até a sombra da árvore que um dia mudara seu destino. Ali se deitou. Já não ouvia os comentários dos transeuntes. Uma última frase se repetiu em seu pensamento – um vestido pra mãe…
Grande ensaio Marinho. Espero que esteja tudo bem com você. Foi muito importante para mim ter te conhecido no Boddhisatva,
obrigado por ter me convidado. Grande abraço, Paulo
(Udaseen)
Que ótima lembrança! Agradeço. Abração
Belo conto. Gostei muito. Percebe-se a solidão e o total desamparo de um rapaz que nem nome tem, como muitos por aí. Abração. Rubens