Tentação
– Desculpe minha curiosidade, já passamos por três igrejas, e observei que você fez o sinal da cruz pra todas elas.
– Faço isso diante de todas por onde passo. Essa vida de motorista de táxi é perigosa, temos que nos agarrar com alguém forte.
– Fazer o sinal tranquiliza?
– Com certeza! E garante minha proteção. Pelo jeito, o senhor não é católico, se fosse, saberia disso, da proteção divina.
– Não, não sou católico.
– Desculpe eu perguntar: qual é a sua religião?
– Nenhuma. Sou ateu.
– Ateu? Não sei bem o que isso quer dizer.
– Que eu não acredito em Deus, não acredito que exista um deus.
– Cruz credo! O senhor não tem medo?
– Do que?
– De um demônio lhe pegar. Digo isso porque o senhor, se não é católico, nem deve ter anjo da guarda para lhe proteger.
– Também acredita em anjos?
– Claro! Sem eles estamos perdidos. O meu anjo já me salvou de cada enrascada… Um dia fui assaltado aqui dentro deste mesmo carro por dois meliantes, na certa comandados pelo Diabo.
– Como sabe que foi um anjo que o salvou dos bandidos?
– Porque na hora do aperto, chamei por ele. Ele não deixou que nada de pior me acontecesse… Só levaram meu dinheiro e me deram uma coronhada na cabeça. Veja a cicatriz.
– O corte foi grande… Seu anjo podia ter sido mais eficiente.
– Está zoando? O anjo salvou minha, já foi o bastante. Sou agradecido.
– Desculpe.
– O senhor parece ser uma pessoa que nunca passou necessidade, mas quem nasceu pobre como eu precisa acreditar em algo superior pra ajudar a enfrentar a vida, que não é mole. Precisamos de alguém para nos dar ânimo, esperança.
– Entendo. Diga-me uma coisa: você acha que tudo de ruim que acontece é culpa do Diabo?
– Nem tudo. Deus também pode castigar quando a pessoa merece.
– Cuidado!
– Maldito trânsito!
– Ufa! Quase bateu no ônibus. Pode ir mais devagar, não estou com pressa. Então o seu Deus também comete maldades?
– Maldades, não, justiça divina.
– Quer dizer que acredita naquele deus vingativo que lançava raios e exterminava povos e cidades da antiguidade, aquele do Velho Testamento…
– Velho o quê?
– Velho Testamento. É uma parte da Bíblia.
– Não conheço, mas se está na Bíblia, que foi escrita por Deus, deve ser verdade. Tenho um vizinho que é quase padre, seminarista, e entende de religião. Ele diz que quem não está com Deus, está com o Diabo.
– Não se preocupe, não estou com o Diabo. Aliás, ele também não existe.
– Tem certeza? O Diabo é ardiloso. Esse meu amigo quase padre acha que as pessoas que não acreditam em Deus acabam cometendo crimes.
– Bobagem.
– Ele diz que temos uma natureza maldosa, e que se não fosse pelo temor a Deus, pelo medo do castigo divino, de irmos pro inferno, só faríamos maldades e o mundo estaria perdido.
– Não penso assim. O homem não é mal por natureza e nem precisa de um deus para conviver socialmente. Sabia que na República Tcheca mais da metade da população não acredita n’Ele? Mesmo assim, os índices de criminalidade são semelhantes aos da Itália e Espanha, os países mais católicos da Europa.
– Duvido. Deve ser mentira da imprensa. Se fosse assim, esse país seria o paraíso do crime, filho matando pai, mãe esganando filha…
– Cuidado! Quase bateu no ônibus. Está nervoso? Devia dirigir com mais cuidado.
– É o senhor que está me deixando assim. O senhor, com a sua descrença fica me tentando…
– Não é minha intenção…
– Já que o senhor é tão sabido, me responda: seus pais acreditavam em Deus?
– Acreditavam.
– Seus avós acreditavam em Deus?
– Acho que sim.
– E porque o senhor não acredita, acha que eles eram ignorantes?
– No passado a crença comum era a de que o Sol girava ao redor da Terra. Por que nossos antepassados acreditavam nisso, também devo? Por que temos que aceitar a existência de que uma coisa que nunca vimos, que ninguém viu?
– Há muitas coisas que não vemos e que existem, como o ar, as ondas de rádio, de televisão…
– Mas essas coisas podem ser detectadas. O senhor pode sentir o ar, não pode?
– Também posso sentir a presença de Deus, não posso?
– Ora rapaz, nesse nível não se pode discutir nada.
– Acho bom! Melhor a gente parar com esse assunto, o senhor está complicando as coisas, embaralhando minhas ideias…
– Cuidado! Quase atropelou a senhora…
– Chega!
– Porque está parando o carro? Este não é o endereço…
– Quer mesmo saber? O senhor é um pé no saco. Pode descer e nem precisa pagar. O Diabo que o carregue.
Esse é um texto genial. Adoro, porque mexe com questões tão essenciais da vida: o que, afinal, é a vida? E essa história de deus, de diabo… Adoro seus mistérios, Marinho!
Desde que me disse que estava dando uma olhada no meu blog,
de vez em quando me pego imaginando seu olho clínico funcionando. Hahaha
Este assunto foi o tema central de toda minha vida.
Besos