Cicinha
Desceu do carro para abrir a porteira e deparou-se com ela – uma cadela peludinha, abanando o rabo pra ele. Desviou o olhar para não sucumbir à tentação – Se pegar todo cachorro que abandonam em minha porta… Ele já tinha seis, todos resgatados do abandono na entrada da fazenda. Era dessas almas compassivas que se doíam pelos outros, fossem humanos ou animais – Mas pra tudo deve haver um limite, dizia a si mesmo.
Dia seguinte pela manhã, ao sair para o trabalho, ela ainda lá, abanando o rabo, já com menos euforia. Desceu do carro e a espantou – Fora daqui! Vai procurar outra fazenda, aqui não! A cadela se afastou devagar, magricela.
Voltou ao carro e partiu, mas seu pensamento ficou preso: essa cachorra não saiu daqui, então não bebeu, não comeu… Temia pelo bem estar de suas crianças. Tinha filhos pequenos, se lembrava deles cada vez que trazia pra casa um animal das ruas: poderiam transmitir parasitas, alguma doença, ou até não gostarem de crianças e morderem. Além disso, davam trabalho por uns dias; banhar, desinfetar, vacinar, castrar, acostumar-se com os outros animais, com as crianças, enfim, a adaptação podia ser trabalhosa, a cadela podia ser neurótica… Passou o dia pensando nela, revendo sua figura se afastando dá porteira, olhando pra ele.
Quando voltou no fim da tarde, parou o carro a uma boa distância da entrada, surpreso ao perceber a cachorra no mesmo lugar. Mas agora ela estava deitada, de longe não conseguia saber se estava viva ou morta, se algum caminhão tinha passado sobre ela… O coração disparou. Aproximou-se às pressas. Então, a cadela ergueu a cabeça lentamente, com esforço, bateu o rabo na terra devagar, apenas duas vezes. Foi então que ele percebeu a barriga: Ela está prenha, morrendo de sede e de fome, e os filhotes dentro dela, também.
Sem pestanejar, abriu a porta do carro e a colocou para dentro.
Já em casa, depois de comer e beber tudo o que suportava, a cadela grudou nele como um carrapato. Recebeu o nome carinhoso de Cicinha. Comia, bebia e o seguia, onde quer que ele fosse, uma fiel cadela de guarda. Quase dobrou de peso em um mês, e pariu quatro filhotes coloridos, lindíssimos. Demonstrava ser boa mãe, amamentando e limpando os bichinhos dia e noite. As crianças adoravam brincar com eles no colo, mas o trabalho de cuidar, a despesas… – Agora são onze cães, quê fazer? Ainda bem que são lindos, talvez consiga dar alguns, longe das crianças, é claro.
Dias depois, limpava a cesta da ninhada, quando ouviu um grito apavorado vindo de fora. Correu. Era seu filho menor, no gramado, paralisado diante de uma cascavel armada para dar o bote.
Também ele paralisou, lívido. O quê fazer? Aproximar-se poderia fazer a cobra desferir o golpe; ficar ali inerte… Naquele momento, a cadela deixou a cesta com os filhotes, correu para fora e armada de coragem, atacou sem vacilar. Matou o réptil com uma mordida na cabeça. Entretanto, o veneno espirrou em sua boca, seu corpo estremeceu, morria. Seu olhar parecia suplicar pela vida de seus filhotes.
A tristeza da casa não passou de alguns dias, espantada pela graciosidade dos filhotes. Como eles deviam ser alimentados com mamadeira em curtos intervalos de tempo e o o pai tinha que ir trabalhar, coube às crianças aprender a fazê-lo, o que era fonte de prazer e alegria.
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